domingo, 30 de agosto de 2015

Ensaio sobre o acaso ou Não existe acaso?

O acaso segundo os supersticiosos (Parte I)

Tenho uma amiga e colega de trabalho que não acredita em “acaso”. Segundo sua visão mística do mundo, todos os fatos estão misteriosamente “conectados”. Até aqui sem problemas. Porque, o misticismo e a superstição têm sido uma marca permanente da cultura popular ao longo dos séculos. E sobre tudo, constitui uma característica típica do senso comum.
O que causa estranhamento é imaginar como ela consegue conciliar essa visão de mundo com sua formação de cientista (social)? Como é possível afirmar a validade de uma explicação científica dos fatos ou fenômenos sociais, admitindo ao mesmo tempo haver conexões ocultas e transcendentais que escapam a capacidade de penetração e abstração dos mais perspicazes dos sociólogos? Eles não são infalíveis sabemos; porém, esta constatação não nos permite invalidar todo seu arcabouço teórico. Ao passo que admitir que existam conexões ‘ocultas’ ou sobrenaturais que expliquem ou determinem o funcionamento da natureza invalidaria qualquer proposição teórica ou científica.
Esta contradição opõe de forma clara e irremediável estas duas visões de mundo, a científica e a religiosa ou supersticiosa. Trocando em miúdos, temos de um lado, uma visão de mundo que nega de forma peremptória a existência do acaso (ou ao menos em certas ocasiões), admitindo haver conexões ocultas entre fenômenos aparentemente desconexos, mas, sobretudo, afirmando que o elo entre fenômenos que coincidem encontram-se não no plano da explicação material da realidade; mas num plano imaterial, melhor dizendo, num plano espiritual, sobrenatural da realidade.
Do outro lado, teríamos que aceitar que parecesse, no mínimo, estranho aos olhos e soasse ao menos absurdo aos ouvidos de um Comte, de um Max Weber, de um Durkheim, e, sobretudo ao intelecto ardiloso do velho Marx a admissão da existência de uma "força" sobrenatural explicando e determinando o funcionamento dos fenômenos naturais. Mesmo admitindo que, para algum destes ‘cientistas sociais’, houvesse realmente alguma conexão entre eventos aparentemente distintos da realidade social, ou seja, “que não houvesse acaso”, tais conexões seriam investigadas na "realidade" e expressas em suas elaborações teóricas por meio de abstrações formais e conceitos que teriam como objetivo desvelar o caráter ‘positivo’ do qual, em última instância seriam compostos a incógnita que conecta estes mesmos fenômenos. A exemplo, conceitos como os de “fato social”, “fenômeno social”, “condições materiais” etc., se assentam sobre princípios, causas ou leis que expressam, como dito, alguma conexão entre fenômenos dispares, e, emergem duma investigação radical acerca dos elos que constituem positivamente a tessitura social.
Bem, quando lá acima nos referimos ao termo “mística” não quisemos dizê-lo num sentido clássico, tal como a mística de um Mestre Eckhart. Consequentemente, podemos inferir que minha amiga é mística no sentido mais popular do termo. Basicamente, ela é uma daquelas pessoas que possui pedras que, segundo sua visão supersticiosa do mundo, concentram energias “cósmicas”, uma pessoa daquelas que recita mantras, que constrói mandalas, que acredita em feitiços, correntes de pensamento positivo e coisas afins. É, enfim, uma daquelas pessoas que acredita que todas as coisas e seres estão repletos de magia e poderes sobrenaturais. É mormente uma pessoa supersticiosa. Este é o sentido ao qual me referi, à mística. Uma mistica, digamos, “bem popular”.
Pode parecer leviano comparar assim essas concepções místicas; mas, de fato, se observarmos a concepção mística popular, a superstição, verificaremos que ela soa muito mais caótica, aja vista padecer de qualquer elaboração ou organização sistemática que àquela mística que aqui denominamos de clássica. É praticamente impossível que este fato passe despercebido aos olhos de um cientista social, por exemplo, uma vez que torna evidente seu caráter desarticulado e precário. No entanto, aos olhos dos adeptos desta dita “mística popular” esta precariedade é somente aparente, pois, segundo alegam, na verdade sob este manto de precariedade e desarticulação se oculta uma complexidade tão profunda que as mentes ‘quadradas’ e ‘formatadas’ dos estudiosos são “incapazes de alcançar”. Neste sentido, argumentam ser coisa para iniciados. Outros dizem - com certo ar de superioridade, esta mística complexa e popular se aproxima da física quântica na medida em que demonstra-se profundamente quase que incognoscível! Quem diria física quântica....
Bem, voltando ao “acaso”. No sentido em que afirma minha amiga, neste sentido, se você for a um lugar e ‘trombar’ com uma pessoa a quem muito estima e que há anos não via, “isto”, este evento certamente possui uma explicação transcendental, uma vez que não acontece por acaso. Segundo elas, haveria uma força oculta, conspirando para que esse encontro acorresse. Neste mesmo sentido, podemos considerar que se você caminha descontraído por uma calçada e, de repente, numa curva, numa esquina, uma telha se desloca do telhado de uma casa e cai sobre sua cabeça, isso não ocorre por acaso. Muito embora você não tivesse nenhuma ligação ou estivesse pensando na telha ou coisa parecida. Este fato que podemos considerar um acidente trágico, não acontece, segundo esta concepção ‘mística e complexa’, "por acaso”. Aconteceu por que tinha que acontecer! É como se sua trajetória e a da telha tivessem sido pré-estabelecidas, pré-determidas desde há muito tempo por forças estranhas; por forças alheias a sua vontade e ocultas a sua consciência. O que neste contexto místico e complexo faz bastante sentido, uma vez que as coisas no mundo estão absolutamente emaranhadas nas redes de um tecido do qual somente os místicos, os iniciados fazem alguma ideia.
Buscando desemaranhar esta concepção de mundo, esta concepção de realidade, poderíamos justapor o conceito de “coincidência” presente no não tão popular dicionário Houaiss. Neste dicionário coincidência significa: “ato ou efeito de coincidir; igualdade, identidade de duas ou mais coisas; ocupação do mesmo espaço; justaposição; realização simultânea de dois ou mais acontecimentos; simultaneidade; ocorrência de eventos que, por acaso, se dão ao mesmo tempo e que parecem ter alguma conexão entre si; concorrência de coisas para um mesmo fim”.
Ora, neste sentido, o mundo esta evidentemente repleto de coincidências. Por exemplo, agora eu me encontro diante do computador escrevendo; pode parecer ridículo, mas é uma coincidência no mesmo sentido que é asseverado na definição do Houaiss.
Sendo assim, podemos verificar que ocorre o tempo inteiro um sem número de coincidências às quais não damos a menor atenção, em contraposição há um número absurdamente pequeno, diria eu quase escasso, de coincidências que, em circunstancias particulares, nos chamam atenção, somente a estas chamamos de "não acasos" e atribuímos significado especial. Assim, percebe-se aqui que é absolutamente arbitrário os casos em que atribuímos significado às coincidências. Basicamente, é o sujeito quem decide que ou quais coincidências ele chamará de "não-acasos”.
Bem, o ser humano vive num universo que é extremamente simbólico. Aliás, como bem verifica Levi-Strauss, estamos imersos numa estrutura tal que não é possível dissociar o fundo cultural e social do individuo. Ousaria dizer que na concepção estruturalista, o fundo é “no fundo” o individuo. Fato que justificaria nossa busca quase que incansável por sentido, por um sinal em tudo o quanto vivenciamos. Sob este aspecto, não é exagero afirmar que o homem é por natureza um ser de símbolos, um animal simbólico, cujas ações mais fundamentais consiste em atribuir símbolos, signos e significados às coisas. É sua condição subjacente, àquilo que ousamos denominar de “natureza humana” (num sentido cultural)...