(Riobaldo; in Grande Sertão: Veredas - Guimarães Rosa)
Viver é muito perigoso...
Se esta afirmação fosse atribuída à realidade do mundo animal não veríamos, de parte alguma, grandes objeções. Todos, mais ou menos, concordam: a vida no mundo animal é um perigo. É, em certo sentido, um estar exposto.
No mundo animal, os momentos de tranquilidade são alternados, ou melhor, integrados a uma atividade de vigília constante. Para cumprir esta finalidade e preservar ao máximo sua existência, os animais laçam mão de uma série de recursos e artifícios. A agressividade constitui, sobretudo, um dos instrumentos fundamentais para a preservação de sua integridade e sobrevivência.
Porém, o humano, com seus “pactos”, “contratos” e “convenções” ‘parece’ ter criado um mundo de tranquilidade. “O oceano da tranquilidade”. Será? Nesse aparente mundo ou mundo das aparências, supõe-se não existir mais a necessidade de o homem manter a vigília constante, sua agressividade. Nesse mundo, a preservação do indivíduo virou função do Estado. Os mecanismos de camuflagem, de atração e ataque foram supostamente abandonados, e substituídos pelos “instintos” de solidariedade, de fraternidade, ambos característicos da sociedade moderna. Será?
Contudo, essa tranqüilidade, suposta condição de uma humanidade superior e evoluída, constitui, quando muito uma máscara, persona a serviço da hipocrisia , da inautenticidade; promovida por um ideal de homem que nega sua corporeidade em troca de uma crença niilista, já denunciada por outros.
A própria realidade humana, a esfera humana, a antroposfera engendra em muitos momentos disputas tão acirradas quanto àquelas típicas do universo animal. Aliás, somente no mundo humano é que algumas disputas adquirem requintes de crueldade gratuita.
Mas manter a aparência este é o lema. Os homens, as instituições, religiões, entre outros. Tudo parece estar organizado para esta estranha finalidade: manter as aparências. O cinismo, num sentido precário; a hipocrisia, num sentido geral, sustentam essa “aparente tranqüilidade”.
Riobaldo, personagem do romance GRANDE SERTÃO: VEREDAS de Guimarães Rosa, repete continuamente a frase: “viver é muito perigoso”. Ora ele essa frase é expressa como uma questão, ora como uma exclamação. Viver autenticamente é muito difícil; de fato, muito perigoso.
Não obstante, a mentira possa ser um bom tempero para a tranqüilidade.
Homens como Riobaldo, apartados da sociedade em virtude de sua condição marginal, parecem viver, no entanto, para além dos limites daquela tranqüilidade, a beira do precipício, numa condição de exposição verdadeira, derradeira condição humana. Onde viver é, de fato, muito perigoso. No limite das condições humanas o homem aparece sempre mais autêntico. Porém, essa autenticidade cobra um preço, visto que, nessa condição de absoluta precariedade e fragilidade, a vida demonstre estar sempre por um fio. Esse é o preço cobrado: a consciência plena de si, de sua frágil condição de vivente, do seu “estar ai”. Assim, o homem simples expressando-se também de maneira muito simples perscruta o profundo da condição humana, “a morte sempre iminente”.
Nos limites de suas condições, o homem sempre encontra consigo mesmo, e em si mesmo a oportunidade para uma reflexão profunda sobre sua realidade. É na dura vida de jagunço, percorrendo os sertões mais inóspitos, mais secos que ele encontra a oportunidade para maravilhar-se, para espantar-se diante de si e descobrir o homem...