segunda-feira, 27 de março de 2017

FOLHETIM 02 - SÚBITA REPENTINA

DA IDA À CONVENÇÃO

OU

UM PAPO DESCONFORTÁVEL EM UMA VIAGEM DE 09 HORAS

Nos dias que ficara na cidade interiorana seguira a cartilha como um digno príncipe em treinamento. Fora uma viagem lenta, em companhia de Íris, vizinha de baia do escritório, chefe do setor de relações públicas da empresa, e Nestor, velho fumante, rabugento e um dos donos da maior empresa de arquitetura e construção civil de São Paulo, a Agamedes S/A. 
Chris ficara o tempo todo no banco de trás de um carro automático, grande, confortável e com ar condicionado muito gelado, que o fazia esquecer o calor externo do verão de novembro. Vez ou outra, o conforto do ambiente refrigerado era incomodado por aquele Nestor que, guiando os empregos dos dois passageiros e também o próprio carro, sentia-se no direito de comandar a falência dos pulmões alheios, abrindo a janela e fumando um cigarro. Em menos de meia hora, outro. E depois outro. 
Para romper o silêncio e mostrar-se determinada a animar quaisquer tipos de situações sociais, até mesmo uma viagem de nove horas de carro com um chefe que conseguia extrair de um sim, um não, Íris puxava assuntos perdidos, desde o ambiente até a rotina diária dos companheiros de trabalho, com a habilidade de promover, naquele momento, não uma viagem para um evento de trabalho, mas um trabalho que era viajar para um evento de trabalho. A cada pergunta, Chris sentia-se apertado no banco de trás, envolvido em inúmeras resoluções possíveis que não vinham a colocá-lo em alguma enrascada, quer com o velho, quer com Íris.
- Então, Chris, como estão as coisas na área de projetos?
E ele respondia com sentenças que não definiam nem um estado de extremo stress, nem de um relaxamento completo. 
- E a galera lá do projetos, dizem que eles são super animados! São muito envolvidos com os outros departamentos!
E acabava que aquelas perguntas lhe stressavam mais do que realizar os projetos isolado numa baia, seguindo o protocolo de uma rotina repetitiva que era ajustar detalhes matemáticos de um desenho digital numa tela de computador.  Não era bom com as palavras. Não tinha o traquejo nem o estudo daquela garota esperta. Mas enxergou uma brecha que poderia lhe tirar daquele rumo de prosa e talvez despertasse ao velho a vontade de abrir a boca:
- Então, quais são os planos? Eu, bem, até agora, não entendi muito bem porque tenho que acompanhá-los nessa viagem... Não que eu não desejo estar aqui, não é isso... Só que eu acho que sou mais útil no escritório... Bem, é... Não que...
- Cala a boca, diabo! - conseguira quebrar o silêncio do velho. - é um inferno ficar ouvindo esses seus mi mi mis. Você não contou nada pra ele, não?
Íris sorriu e como uma gatuna das palavras, soube lidar com aquele climão com muita sapiência:
- Em uma viagem de nove horas, a gente preparava ele melhor do que deixá-lo preocupado a semana inteira. Ele é do projeto, vai que erra um número e PUF! Lá se vai um edifício abaixo... Mata pessoas... Sabe como é?
- Você tem toda razão. - o velho não abria muito bem o olho. Tinha sombrancelhas grossas e expressão amarrada que deixava os olhos apertados, quase invisíveis. Na primeira hora, causou certo receio tanto em Íris como em Chris, mas as curvas, os faróis e o limite de velocidade eram respeitados com maestria. Ou era um piloto automático, ou algum tipo de sexto sentido do velho. - Esse imbecil ia esquecer tudo mesmo. - Chris não entendia aquilo como uma ofensa. Nunca. - Você é neto do Trofônio Agamedes, o homem que dá nome a nossa empresa. Seu avô, junto do irmão mais velho, foram os maiores arquitetos de sua geração. Construíram edifícios de grande destaque em São Paulo e em outros Estados do país. 
Chris não entendeu os motivos de relembrar uma história conhecida. Mesmo a empresa que trabalhava levar o nome do avô, ele não tinha parte alguma na empresa, pois o avô morrera pobre, passara a pobreza para os filhos e só os netos começaram a encher um pouco os bolsos. No fim da vida, seu avô assumira que todas as suas construções foram realizadas com matéria-prima roubada e doou toda sua riqueza, com exceção da casa que morava com sua esposa, para melhorias sociais de toda região que explorara ilicitamente. Já não tinha mais tempo de vida para ser preso e morrera meses depois do depoimento. A família foi parar nas mídias nacionais e internacionais. Todos acabaram esquecendo do evento, até os arquitetos. Chris nunca sofrera para arrumar empregos na área de arquitetura e ninguém nunca comentara sobre o império de seu avô. Até entrar na Agamedes S/A. Lá, todos sabiam da história do velho, que era lembrada anualmente nas festas de fim de ano.
- Não entendo...
- Então, garoto, te trouxemos para que você sorria e repita a todos as histórias de seu avô. Para quem conversar com você, com exceção de mim e a bonequinha aqui, você é uma revelação naquela empresa. Uma revelação, porque herdou, da porra do seu avô, o conhecimento de um velho safo! 

Íris sorriu e Chris sentiu-se amiudado no banco traseiro. Era o neto que menos se interessara pelos passados familiares, mas que tivera mais contato com seu avô.

Nenhum comentário:

Postar um comentário