O que você faria se soubesse que tem somente mais um dia de vida?
Pedro acordava todos
os dias às cinco da manhã, detestava faltar ao trabalho. Os motivos e
justificativas para sua resiliente assiduidade, porém não eram tão nobres. Era
um sujeito convencional, tíbio mesmo e temia apenas ser demitido. Bem, há
quem pense que seja perfeitamente normal que um sujeito se preocupe em perder
seu emprego e isto justifique suficientemente sua prudente, porém pusilânime dedicação. Mas, convenhamos, viver uma vida de
trabalho sob a ameaça da demissão não é fácil para ninguém, aliás, não é nada saudável.
E o ambiente competitivo de sua empresa criava esse tipo de tensão e expectativa. 'A meta ou a rua', esse era o mantra do terror. _ A bem da verdade, suas tripas ora se contraiam, ora destendiam e se agitavam. Algumas vezes sofria com a constirpação, outras com a danação. E assim era, todas as noites de domimgos quando lembrava das metas, do trabalho. E, mesmo não gostando nem um pouco do seu emprego, lhe causava ainda mais mal pensar na ideia de mudar, tinha verdadeira ojeriza por mudanças. Também considerava vagabundos "aqueles sujeitos desempregados". Pensava assim, mesmo daquelas pessoas nas filas de emprego por aí. "Mais uma arruaça!" Detestava
arruaça. Paranoicamente, imaginava sempre haver alguém conspirando para
puxar-lhe o tapete no trabalho e tomar-lhe a promoção; mesmo sabendo que nos
últimos dez anos não houvera promoção alguma em sua empresa. (- É uma questão de
contenção de despesa! Afirmava a chefia; – nossos colaboradores precisam
compreender - complementavam)[1].
Mesmo assim, cogitava ele, "quando forem liberadas as promoções, quero estar
qualificado".
Na última
terça-feira, há uma semana aproximadamente, porém, Pedro faltou ao trabalho, - coisa absolutamente rara! O pessoal
do RH informou que - foi por “problemas de saúde”. Teve que ir ao consultório
médico pegar o resultado de uns exames que havia feito – ultimamente vinha
sofrendo de fortes dores de cabeça e nos últimos dez anos, como dito,
recusava-se a faltar, nem mesmo tirava suas folgas-prêmio. No entanto, um desmaio na última semana o levou a uma quebra na sua rotina "a coisa apertou, tive que procurar um médico".
Ficamos sabendo
depois que ele tinha recebido um diagnóstico de câncer na cabeça que
dizia o seguinte: câncer na base anterior de seu lobo frontal. Para o médico, o câncer
estava tão próximo de seu hipotálamo que na verdade ele não conseguia explicar
como Pedro ainda estava vivo, andando e se comunicando.
Talvez as doses
cavalares de analgésicos que ele vinha tomando nos últimos dias pudesse
explicar alguma coisa, mas sua sobrevida para o experiente neurologista era um
verdadeiro fenômeno. Ao que se sabe o médico foi duro, direto, sem rodeios no
diagnóstico e explicou como quem lesse um obituário: - Bem, senhor Pedro,
as noticias não são boas. O tumor em sua cabeça encontra-se já em estado tão
avançado que há em seu crânio uma verdadeira bomba relógio. Suspeita-se que seja um
tumor maligno, visto que seu crescimento, sua multiplicação celular parecia estar acontecendo numa taxa tão
exponencialmente alta. Neste ritmo sua sobrevida poderia até ser calculada em horas, restando inevitavelmente pouco tempo para que o
câncer atinja seu hipotálamo e detone seu sistema nervoso central colapsando inclusive o
sistema nervoso autônomo, o que implicará numa consequente falência dos seus
órgãos. Por esta razão devo alertá-lo que é quase certo que o senhor dispõe de no máximo mais algumas horas de
vida.
Pedro ouviu tudo
aquilo com um olhar distante e vazio, parecia meio desligado. Na verdade estava
concentrado, apenas lembrara que havia esquecido seu grampeador em cima da mesa, certamente um de seus colegas estaria usando seu grampeador - cogitava.
Para o médico não era possível decifrar na expressão facial de Pedro se ele atinava para a seriedade da situação, para a
gravidade de seu diagnóstico ou se estava em estado de choque. O estranhamento do
médico só aumentou quando viu seu paciente se levantar da cadeira e sair da
sala cumprimentando-o, desejando-lhe um bom dia e um 'até breve'. Diante disso, Dr.
Renato, experiente neurologista, não teve dúvidas, de fato seu paciente estava em
estado de choque. Pensou em perguntar se Pedro estava acompanhado, mas
hesitou...
Pedro não tinha
parentes na cidade e há pelo menos dez anos não entrava em contato com sua
família. O motivo não se sabe, mas tudo indica que tenha simplesmente se
afastado e deixado de se comunicar. Logo o tempo e a distância tornaram-se eles
mesmos um constrangedor empecilho. A partir daí por bloqueio ou vergonha passou a
evitar o contato. Razão pela qual os laços fraternos foram se esgarçando como um velho tecido. Tanto que sequer sabia dizer se seus pais estavam vivos ou mortos.
Ao que parece essas coisas de família não lhe interessavam mais, entediavam-no
mesmo.
No dia seguinte, o som estridente de
seu despertador soou às cinco da manhã, era então quarta-feira. Não costumava
tomar banho antes de sair para trabalhar. Usava lenços umedecidos. Apesar de
ter um moderno e agradável chuveiro em seu banheiro, seguiu a mesma rotina de sempre. Levantou-se. Sempre pelo lado direito da cama. Enfiou os pés nas sandálias. Desligou o alarme. Deu a volta na cama e apanhou seu relógio de pulso que deixava na
estante, sempre do lado oposto. Não se espreguiçou, apenas rumou para o banheiro.
Parou diante do espelho e se olhou por uns segundos, como se houvesse notado alguma coisa estranha, mas, nada. Começou sua sessão de lenços umedecidos nas axilas, no
pescoço, nas genitálias. Em seguida jogou um pouco de água no rosto. Fez um
gargarejo. Cuspiu na pia. Olhou de um lado para o outro o rosto, "a barba ainda
esta boa". Vestiu-se andando. Não costumava presta atenção em detalhes, a camisa
tinha dois vincos na manga, a calça também.
Aproxima-se do
horário em que apanha o 907, no ponto em frente ao seu edifício. "Se perder o
907, vou ter que pegar pelo menos duas conduções até o trabalho; não quero
correr o risco de me atrasar". Tomou um gole de café amanhecido e frio e saiu.
Apesar de pegar o mesmo motorista e o mesmo cobrador há quase dez anos, não costuma falar com ninguém e, quando falava, balbucia somente monossílabos, vez ou outra dissílabos, se necessário. Com os outros passageiros, nem pensar, preferia preencher as palavras cruzadas que baixara num aplicativo do celular. No ponto próximo a Paulista desceu de cabeça baixa e andou mais duas quadras, atravessando por uma praça com belos jardins. Nem conseguira perceber que apesar do clima as azaleias floresciam. Entra no edifício Montreal, o elevador é lento, cheio e o ar condicionado está quebrado, _ tanto faz! São pelo menos cinco paradas até chegar ao seu piso, mesmo assim, insere seu cartão exatamente no horário.
Apesar de pegar o mesmo motorista e o mesmo cobrador há quase dez anos, não costuma falar com ninguém e, quando falava, balbucia somente monossílabos, vez ou outra dissílabos, se necessário. Com os outros passageiros, nem pensar, preferia preencher as palavras cruzadas que baixara num aplicativo do celular. No ponto próximo a Paulista desceu de cabeça baixa e andou mais duas quadras, atravessando por uma praça com belos jardins. Nem conseguira perceber que apesar do clima as azaleias floresciam. Entra no edifício Montreal, o elevador é lento, cheio e o ar condicionado está quebrado, _ tanto faz! São pelo menos cinco paradas até chegar ao seu piso, mesmo assim, insere seu cartão exatamente no horário.
Sua mesa fica
distante de qualquer janela, em todo caso a mais próxima dá para a parede do
prédio vizinho, é cinza o dia todo! Em sua baia descobre que de fato alguém
usou seu grampeador, "provavelmente Eduardo, o gordo, está sem grampos"! Olha meio
emburrado para os lados e da início a sua rotina. Basicamente, carimbos,
registros eletrônicos e escaneamento de documentos pertinentes a contratos de
seguros. A julgar pelo volume de documentos em sua mesa o dia ia ser longo. Dia
comum, maçante. Apesar da insatisfação e da rotina, vendeu todas suas férias nos últimos anos. Quem sabe venderia a deste ano também!?
Aproxima-se a hora
do almoço, seu colega de baia convida-o para almoçar: - hoje tem feijoada no restaurante
do primeiro andar! - Não, obrigado, pedi uma marmita. A marmita barata já está
quase fria, o alface dentro da comida já está murcho, e o tomate por cima da
comida dá ao arroz um desagradável sabor azedo. Come tudo na sala do refeitório
da empresa. Tem pressa, "há muito o que fazer"!
O retorno rápido ao
trabalho lhe causa alguma náusea, mas nada que alguns analgésicos não resolvam.
Desde há algum tempo passou a tomar analgésicos por qualquer motivo. Durante o
resto da tarde, chega a ouvir o ruído da chuva que nos últimos dias tem caído no
meio da tarde. O clima varia tanto nesta época do ano em São Paulo que se
tem a impressão de ter vivido pelo menos três estações em único dia. Calor ao meio dia, chuva no meio
da tarde e frio ao entardecer. O tempo escoa lento, porém implacável. Mas, a
monotona rotina o detém entre carimbos, transcrições e digitações.
No fim do expediente
algo de inusitado acontece, os colegas o convidam para um happy hour, - Pedro,
hoje vamos tomar uma cerveja e ver jogo no bar lá da praça! Quer vir conosco?
Diante do embaraçoso convite recusa. - Não. Tenho umas coisas para resolver lá em
casa. - Ok!
No fim da tarde, um minuto de distração sabe-se lá com o que o atrasa, mas, enfim, consegue pegar seu ônibus, que, no entanto, quebra a cerca de três quadras
de sua casa. Sem alternativa, decide seguir o resto do percurso a pé. O dia ainda
estava claro e a chuva do meio da tarde havia deixado o céu azul e límpido como nunca
para este horário. O frescor do ocaso favorecia e as pessoas se juntavam
nos bares e nas mesas dá calçada para o happy hour. Não prestou muito atenção, como sempre baixou
a cabeça a apertou o passo rumo ao seu destino.
Na porta do
apartamento sentiu algo estranho. Cismou por uns segundos antes de enfiar a
chave na fechadura, ponderou..., parecia considerar algo, mas mesmo assim, num
movimento quase que mecânico, quase que automático, virou a chave. Tonteou e
caiu ali mesmo. Só sobre a soleira...
Encontraram-no assim
mesmo no dia seguinte, metade do corpo para dentro do apartamento e as pernas para fora, meio que encolhido numa posição fetal.
Comentavam no dia seguinte durante seu velório.
Após o enterro os
colegas de trabalho resolveram tomar 'uma' num boteco ali mesmo, próximo ao
cemitério. Foi Eduardo, o gordo, herdeiro oficial das miudezas de escritório de Pedro,
quem puxou o assunto...
- O que vocês fariam se soubessem que tinham somente mais um dia de vida?
- O que vocês fariam se soubessem que tinham somente mais um dia de vida?
[1]
Muito embora, os últimos três balancetes trimestrais da empresa tivessem apresentado
apenas índices positivos.
Eu faço as coisas assim mecanicamente é interessante como a rotina nos consome, absorve nossas vontades e inspirações. Eu não sei o que faria no meu último dia.
ResponderExcluirDificil de vê como a gente se rende pouco a pouco ao sedentarismo fisico e mental! Somos assim mesmo...peças mecanicas q por algum tempo ou por todo tempo, vive para morrer a prestaçào!
ResponderExcluirMuitos de nós sobrevivemos em meios sociais repletos de pessoas com vidas comprometidas pelo sedentarismo fisico e mental.
ResponderExcluirPoderiamos culpar o governo, a situação econômica e até a propria sociedade atual q preda o seu proximo de todas as formas! A competitividade do mundo atual nos mata aos poucos, como um carnê das casas bahia...a prestação!
Mandou bem. Embora essa literatura de caráter existencialista seja um bocado deprimente, para mim, desse modo destaca o ponto nevrálgico ao leitor. Vou compartilhar com muita gente, na esperança de que leiam e haja o efeito catártico esperado.
ResponderExcluirIria passar esse dia numa cachoeira linda. Pode até ser a Cachoeira de Meu Deus em Eldorado...Hahaha....
ResponderExcluirAdorei o texto que também pode ser tema pra Produção de Texto com meus alunos!!!
Gostei do texto . É pra se refletir mesmo a vida passa muito rápido...faltar no trabalho pra pegar um cinema com quem se ama
ResponderExcluirnão tem preço . Bjs
Acho que vivemos nossos dias enfurnados nas diversas tarefas e não damos conta do verdadeiro valor da vida. Qualquer dia pode ser o último, mesmo assim, muitas vezes nos preocupamos mais em 'fazer'do que em 'ser'.
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