quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

O homem que não queria pular



“...todos os homens sadios já pensaram no próprio suicídio...”
Albert Camus


Olhar o mundo do alto pode ser sadio, desde que não se confundam vertigem e desejo. Era fim de tarde, abri uma cerveja e, ainda relaxando, aproximei-me da sacada. O sol já rondava as bordas do mundo, iluminando as poucas nuvens que se esticavam no horizonte. Foi quando avistei a certa distância uma figura que se aproximava do parapeito no terraço do prédio mais adiante. Em principio, achei que fosse um desses loucos que andam por aí hoje em dia desafiando a vida, saltando de um lado para o outro, praticando um desses esportes modernos criado pelos franceses, o “le parkur”. 

Analisando melhor sua silhueta, porém, pude concluir rapidamente que não se tratava de uma pessoa na sua melhor forma.

O sujeito subiu na mureta do parapeito e olhou para baixo, como que mirando num ponto ou calculando um ângulo. Em seguida, antes que eu pudesse piscar, ele saltou. Tudo foi tão eterna e alucinantemente rápido, segundos...

Enquanto caia, seu corpo fez meio giro no ar, pude observar. [Hoje me pergunto: ora, se ele não encarou a certeza dura da terra, como desejava – será que o insondável azul do céu obliterou por alguns segundos as firmes convicções que o conduziram até àquele desfecho? O que terá sido das narrativas que possuía de si – passado, presente, futuro? _Agora pouco importam! Embora, nesta altura, eu tenha a firme convicção de que algumas coisas durante aquela queda tenham sido plenamente vividas: o instante, o azul e a queda.]

Tudo fica mais vivido quando o foco é o instante!

O som de seu corpo se chocando contra o chão ecoou na galeria dos prédios vizinhos com um forte estampido.

Logo, aglomeraram-se em torno de seu corpo inerte, curiosos. Para alguns daqueles que se aproximavam, conferir o resultado do desatino era morbidamente necessário.
Não demorou muito, e as vibrações no celular denunciavam, já circulam pelas redes sociais algumas fotos e vídeos da tragédia. Numa delas seu corpo jazia inerte no passeio pavimentado. Uma morte instantânea, certamente, conforme se podia apurar.

Porém, seus olhos, que permaneceram perturbadoramente abertos pareciam revelar algo de ainda mais assustador. Neles, algo como uma expressão de arrependimento provocava a tétrica impressão de que, talvez, em meio a sua trajetória rumo ao infinito, tivesse descoberto algo pelo qual valesse a pena ter vivido; mas que, no entanto, nunca lhe houvera ocorrido. Algo como uma iluminação súbita [quem sabe a (des)afortunada revelação de que apenas a vida enquanto experiência estética bastava, somente ela e nada mais, nenhuma razão, nenhum discurso ou narrativa eram suficientes ou mesmo necessários] e, junto desta epifania a infeliz e estarrecedora conclusão: Agora é tarde demais...

E, assim, seus olhos silenciaram fitando para sempre o infinito azul do céu.

sábado, 21 de dezembro de 2019

Filosofia e Ciência

As palavras indagar e investigar são palavras muito caras tanto para Filosofia quanto para Ciência.
Logo, a pergunta: qual a relação entre Filosofia e Ciência? Tem no meio filosófico, sobretudo, uma resposta trivial. Isto porque a filosofia não possui um objeto estritamente próprio, um objeto específico de investigação sua; como ocorrem nas várias ciências particulares (como a Física, a Química etc). A bem da verdade, "qualquer coisa", qualquer problema humano (e na Antiguidade até problemas formais ou naturais) pode ser objeto da reflexão filosófica.
Mais modernamente a relação entre filosofia e ciência ganhou uma importância fundamental. Conforme o filósofo da ciência Thomas Kuhn, isto pode ser explicado por uma mudança de paradigmas.
Porém, a meu ver, o filósofo que melhor classifica esta mudança é o francês Gaston Bachelard. Segundo Bachelard, a Filosofia da Ciência passa no século XX por uma verdadeira revolução copernicana. Segundo sua análise, a partir das teorias modernas como a relatividade, a teoria quântica e outras, torna-se necessário uma inversão completa no vetor da informação. Desde estas revoluções é a Ciência que passaria a informar a Filosofia. Supondo que se pretenda construir uma filosofia "contemporânea da Ciência".
Nos links a seguir compartilho um artigo de divulgação científica. Neles, o texto relata os resultados inicias de uma investigação no campo da Neurociência. Embora os resultados ainda sejam parciais (e, portanto, inconclusivos); ele no permite vislumbrar avanços significativos no conhecimento da fisiologia do cérebro com implicações inclusive de ordem cognitiva.
Logo, temos aqui um "problema" que também pode ser filosófico. Na medida em que a investigação cientifica nos leve a um conhecimento mais profundo da natureza humana, da fisiologia do cérebro e de seu funcionamento (Por que não!?). Admitir isto pode significar esta em consonância com aquilo que Bachelard propõe.
Você concorda?

Escreva ai abaixo suas duvidas, ideias e reflexões.




quarta-feira, 27 de março de 2019

Guaiamum

(em homenagem a Ailnton P. S.)


Meu padrasto, um baiano. 
Ainda muito jovem conheceu a dor da perda, a fome e a miséria.
E, como muitos outros nodertinos, fugindo delas embarcou num onibus para São Paulo.
Então, promessa de riqueza e prosperidade.
Alguma chance. 
Alguma oportunidade...

Como outros antes e depois dele.
A seduziu. 
A esperança de dias melhores ou mormente a fulga do sofrimento, não se sabe. 

Porém, Baiano coservou sua essência.
Cultivou-a, viveu-a sempre,
A bem da verdade.
Assim, trazia consigo em seu corpo, em sua alma, 
Em seu ente mais profundo uma bahianidade. 
Dado a fazer “baianices” boas...

Dia desses, cismou de caçar caranguejos no pequeno mangue, 
Do pequeno rio, 
Da nossa pequena cidade.
Por sorte ou destino deparou-se com um guaiamum dos grandes.
O bicho era branco e azulzinho, da cor do céu, da cor do mar.
Encantou-se imediatamente;
Engraçou-se verdadeiramente pelo bicho.

Viu nele tanta beleza que decidiu:
_ Bicho desses n'um pode morrer! 

Resolveu que iria criar o crustáceo.

Em casa.

Lá no fundo do quintal, 
dava todos os dias atenção e alfaces ao danado 
que carangueijava por todo o terreiro.
O bicho comia mesmo, comia de se enfartar.
Baiano, em sua singeleza, certo dia ponderou: 
_ o danado precisa d'um nome! 
E, de nome, deu-lhe ‘Guaiamum’.
Afinal, _ 'é arrimo de família'. Se ria e justificava ele.

Guaiamum, no entanto, não viveu muito; 
distante que estava de seu habitat natural.

Certo dia, Baiano deparou-se com o bicho morto lá no quintal. 
Entristeceu-se verdadeiramente...

Nos cortes ainda rasos de seu semblante percebia-se um pesar profundo... 
Dava dó até de oiá...

Acabrunhado, enterrou o bicho no pomar 
E, pôs-se a ruminar sobre brevidade da vida e a ligeireza da morte...

Baiano um dia enfastiou-se da vida também.

E, hoje, cá estou eu a ruminar...


domingo, 3 de março de 2019

Pondé o ressentido

Ler ou ver Luiz Felipe Pondé “o filósofo” falando sobre filosofia ou política por vezes é semelhante a assistir nos dias atuais um enterro seguido por um cortejo carpideiras. É tão inveraz que às vezes se ri, às vezes se chora.

Raro é vê-lo produzir pensamento no sentido da expressão de alguma originalidade, no sentido da expressão de seu “gênio”. Mesmo assim ora ou outra se aventura em tais tarefas, é neste momento que deparamos com um pensamento opaco, impenetrável ao entendimento e a reflexão.

Em seu discurso, por exemplo, o tema capitalismo converte-se numa doutrina de fé. Em geral não progride, como num argumentum ad nauseam, apenas repete-se cansativamente, uma ladainha fatigante, tétrica que emula de forma enviesada o mito do “eterno retorno do mesmo”. Quando não implica simplesmente em puro niilismo estéril, labirintos, círculos viciosos, antinomias.

No mais das vezes, suas ponderações são sempre paradoxalmente reativas: reclama de pegar pouca mulher, enquanto seus adversários pegam as melhores e mais divertidas. Reclama, reclama, reclama...

Ou seja, a expressão de sua “potência de ser” não consiste na expressão de sua individualidade, de sua singularidade; mas numa reação despeitada diante do mundo como ele inexoravelmente é ou esta.

Isso ocorre porque como poucos na história da filosofia, provavelmente ele tenha se especializado na arte do blá blá blá. Contudo, não seria exagero afirmar que nele esta arte tenha alcançado um alto nível de "sofisticação".

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Ciência, educação e opinião

O sujeito da irracionalidade defende com veemência o direito de "opinar", buscando elevar o preconceito e a ignorância ao mesmo status que possui o conhecimento científico, a razão, a sabedoria e o bom senso. De forma consciente ou inconsciente, porém, seu procedimento promove a deterioração da democracia uma vez que sob o pretexto de defender um princípio democrático submete ou suprime o intelecto e a razão. Todavia, deixar prevalecer a opinião infundada sobre os fatos e os dados objetivos da experiência, da pesquisa, equivale no campo da ciência a deixar prevalecer a força sobre a razão.
É preciso estar atento.
Eis o perigo e eis o cenário da luta a qual estamos expostos.
Nosso papel de educadores, neste sentido, nos convoca a ter uma atitude altiva com relação ao enfrentamento e ao combate das irracionalidades em suas várias vertentes e feições. _Da minha parte a única coisa do campo dos instintos que reconheço e admito prevalecer sobre os fatos e os dados da experiência é o amor, por que como diz Nietzsche, só o amor está sempre além do bem e do mal. Excetuando essa situação idiossincrática, o que muitas vezes não se percebe ao aceitar, ao tolerar o discurso irracionalista como parte do jogo democrático é que em seu interior subjaz a sombra do autoritarismo, da intolerância, do preconceito e consequentemente o embrião de toda discriminação e exclusão social.
A má formação científica entre os educadores tem sido apontada não raras vezes como uma das principais causas do déficit educacional em nosso país. Segundo alguns especialistas, esta deficiência é o que se revela nos baixos índices alcançados por nossos estudantes em exames nacionais e internacionais de verificação do nível de conhecimento (também se revela nos números alarmantes adeptos de teorias conspiratórias que se espalham pelas redes sociais). Embora entrem em jogo nessas avaliações outros aspectos sociais que não só a aprendizagem sistemática é preciso admitir que esta deficiência na formação dos educadores possa ser sim considerada um dos relevantes obstáculos ao desenvolvimento da educação e ao enfrentamento dos problemas que nos cerca e relega nosso povo a um perpétuo estado de subdesenvolvimento.
Obviamente, não é a educação nem são os professores os principais ou os únicos responsáveis por esse estado de coisas ou por sua absoluta resolução. Antes e, sobretudo, é preciso exigir uma efetiva atuação do Estado na elaboração de politicas públicas que promovam as transformações estruturais e substanciais necessárias (Entra as quais a melhoria dos salários é sem sombra de dúvidas um fator preponderante). No entanto, não há como negar o papel de protagonismo que está reservado à educação na superação das desigualdades e do obscurantismo que solapam nossa sociedade ameaçando nossa liberdade e nossa democracia.
É neste sentido que afirmo que contra as crenças obscurantistas transfiguradas sob o signo da "opinião" devemos opor a força iluminadora da razão, a análise criteriosa e objetiva dos fatos e da realidade, o saber cético e crítico da ciência, da razão e da reflexão radical e crítica.
Enfim, não podemos e não devemos ser tolerantes com a intolerância mesmo aquelas transfiguradas numa aparentemente “inofensiva opinião”.

sábado, 17 de novembro de 2018

Avareza

"Não é difícil convencer os seres humanos a quererem mais. Humanos cedem facilmente a cobiça".*

Ser avaro na idade média era considerado uma "coisa ruim", isto é, atribuía-se um valor moralmente negativo para avareza. Desta forma, continha-se a cobiça e a sociedade seguia adiante razoavelmente equilibrada, quer dizer, pobres e pequenos comerciantes eram contidos em seu impeto de consumo enquanto a nobreza gozava e ostentava seu luxo.

Mas a modernidade inverteu esse antigo valor moral, inverteu o mundo. Uma vez que na modernidade a cobiça exerce um papel importante ao impulsionar a produção industrial e comercial. 

Neste cenário a avareza torna-se um valor positivo. O mundo moderno, portanto, ira promover um verdadeiro culto da cobiça já que neste novo cenário ela constitui o verdadeiro motor para o desenvolvimento econômico.

*(Cf. Yuval Harari)

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

O Sacrifício


O Sacrifício
O projeto econômico do novo governo se encarado de forma absolutamente isenta, se encarado de maneira formal, pode de fato ser considerado absurdamente racional (poderíamos ter usado a expressão – estupidamente racional, sem temer cometer qualquer excesso linguístico, qualquer erro. Se e somente se os leitores tomassem ao pé-da-letra a interpretação das palavras, dos signos; quero dizer, supondo que a leitura fosse também e tão somente um ato estritamente racional – assim sendo; teríamos, portanto, uma interpretação literal dos termos. Mas será?). Isso se ignorássemos todas as “circunstancias politicas” que cercam os atos de uma administração pública, os atos de quem governa um país, uma república. Somente nessa hipotética e improvável circunstancia, poderíamos encará-lo assim: Um projeto absurdamente racional (estupidamente).

Por conseguinte, ‘o Brasil do futuro’, imaginado nesse, ‘digamos’, arrojado projeto econômico será um país para poucos. Ora, pode-se considerar que seja um projeto econômico em amplo aspecto. É o próprio Paulo Guedes quem expressa de forma direta e contundente, sem rodeios, essa necessidade. Ao menos foi o que quis transparecer ao afirmar em entrevista recente que “terá que haver sacrifícios!”.

A receita é relativamente simples, se há um “mal” a ser espiado numa sociedade tribal/oligárquica, há que haver um sacrifício. Não obstante, quando se fala em sacrifícios em um país como o Brasil nunca se quer dizer de fato ‘o sacrifício de todos’; e, se há sacrifícios, também devemos considerar que historicamente é sempre o corpo a ser molestado, açoitado, flagelado. Mormente, os corpos imolados nunca são os corpos das elites; mas enquanto outrora era o corpo dos negros, dos índios, dos degredados, hoje tomam seus lugares os corpos dos pobres, das minorias, dos trabalhadores. Isso simplesmente por que, numa democracia, o povo é o corpo.

Essa divagação nada tem de oposicionista, de pessimista, de moralista, não aspira sequer fazer simples crítica ao projeto. Exercita no máximo uma reflexão breve e objetiva do que está em jogo (estou em dúvida se se trata de uma fria ou apaixonada observação). É provável, e acredito nisso com um bom grau de franqueza, que se o economista levar a termo seu projeto, ao final e ao cabo, o país terá sido passado a limpo. Teremos, enfim, nossa pequena revolução burguesa, projeto retardatário de modernidade.

Mas não há como ignorar que há um preço a ser pago. Por aqui e por ali, como quem lança pistas, o economista vai revelando indícios; vai revelando seu preço: “salvar a indústria, apesar dos industriários”. Do mesmo modo, e por extensão poderíamos entrever proposições tais como “salvar a agricultura, apesar dos agricultores”; “salvar o comércio, apesar dos comerciantes”. E, por fim, quem sabe “salvar o Brasil, apesar dos brasileiros” (alguns pelo menos). É e sempre foi assim, não na pequena história do Brasil, mas na grande História, na história dos povos, da humanidade.

Por fim, o mundo segue adiante, apesar dos sacrifícios. Aliás, para concluir, não seria incorreto observar que o 'arrojado projeto econômico' pressupõe uma coerência lógica tecnicista, lógica que parece seguir um principio básico da física: “não é possível acelerar, mudar de trajetória, ultrapassar determinados limites num corpo em movimento inercial senão abandonando um tanto de carga”. Senão deixando para trás um pedaço do seu próprio corpo. Que significa isso, senão um sacrifício!?