sábado, 21 de dezembro de 2019

Filosofia e Ciência

As palavras indagar e investigar são palavras muito caras tanto para Filosofia quanto para Ciência.
Logo, a pergunta: qual a relação entre Filosofia e Ciência? Tem no meio filosófico, sobretudo, uma resposta trivial. Isto porque a filosofia não possui um objeto estritamente próprio, um objeto específico de investigação sua; como ocorrem nas várias ciências particulares (como a Física, a Química etc). A bem da verdade, "qualquer coisa", qualquer problema humano (e na Antiguidade até problemas formais ou naturais) pode ser objeto da reflexão filosófica.
Mais modernamente a relação entre filosofia e ciência ganhou uma importância fundamental. Conforme o filósofo da ciência Thomas Kuhn, isto pode ser explicado por uma mudança de paradigmas.
Porém, a meu ver, o filósofo que melhor classifica esta mudança é o francês Gaston Bachelard. Segundo Bachelard, a Filosofia da Ciência passa no século XX por uma verdadeira revolução copernicana. Segundo sua análise, a partir das teorias modernas como a relatividade, a teoria quântica e outras, torna-se necessário uma inversão completa no vetor da informação. Desde estas revoluções é a Ciência que passaria a informar a Filosofia. Supondo que se pretenda construir uma filosofia "contemporânea da Ciência".
Nos links a seguir compartilho um artigo de divulgação científica. Neles, o texto relata os resultados inicias de uma investigação no campo da Neurociência. Embora os resultados ainda sejam parciais (e, portanto, inconclusivos); ele no permite vislumbrar avanços significativos no conhecimento da fisiologia do cérebro com implicações inclusive de ordem cognitiva.
Logo, temos aqui um "problema" que também pode ser filosófico. Na medida em que a investigação cientifica nos leve a um conhecimento mais profundo da natureza humana, da fisiologia do cérebro e de seu funcionamento (Por que não!?). Admitir isto pode significar esta em consonância com aquilo que Bachelard propõe.
Você concorda?

Escreva ai abaixo suas duvidas, ideias e reflexões.




quarta-feira, 27 de março de 2019

Guaiamum

(em homenagem a Ailnton P. S.)


Meu padrasto, um baiano. 
Ainda muito jovem conheceu a dor da perda, a fome e a miséria.
E, como muitos outros nodertinos, fugindo delas embarcou num onibus para São Paulo.
Então, promessa de riqueza e prosperidade.
Alguma chance. 
Alguma oportunidade...

Como outros antes e depois dele.
A seduziu. 
A esperança de dias melhores ou mormente a fulga do sofrimento, não se sabe. 

Porém, Baiano coservou sua essência.
Cultivou-a, viveu-a sempre,
A bem da verdade.
Assim, trazia consigo em seu corpo, em sua alma, 
Em seu ente mais profundo uma bahianidade. 
Dado a fazer “baianices” boas...

Dia desses, cismou de caçar caranguejos no pequeno mangue, 
Do pequeno rio, 
Da nossa pequena cidade.
Por sorte ou destino deparou-se com um guaiamum dos grandes.
O bicho era branco e azulzinho, da cor do céu, da cor do mar.
Encantou-se imediatamente;
Engraçou-se verdadeiramente pelo bicho.

Viu nele tanta beleza que decidiu:
_ Bicho desses n'um pode morrer! 

Resolveu que iria criar o crustáceo.

Em casa.

Lá no fundo do quintal, 
dava todos os dias atenção e alfaces ao danado 
que carangueijava por todo o terreiro.
O bicho comia mesmo, comia de se enfartar.
Baiano, em sua singeleza, certo dia ponderou: 
_ o danado precisa d'um nome! 
E, de nome, deu-lhe ‘Guaiamum’.
Afinal, _ 'é arrimo de família'. Se ria e justificava ele.

Guaiamum, no entanto, não viveu muito; 
distante que estava de seu habitat natural.

Certo dia, Baiano deparou-se com o bicho morto lá no quintal. 
Entristeceu-se verdadeiramente...

Nos cortes ainda rasos de seu semblante percebia-se um pesar profundo... 
Dava dó até de oiá...

Acabrunhado, enterrou o bicho no pomar 
E, pôs-se a ruminar sobre brevidade da vida e a ligeireza da morte...

Baiano um dia enfastiou-se da vida também.

E, hoje, cá estou eu a ruminar...


domingo, 3 de março de 2019

Pondé o ressentido

Ler ou ver Luiz Felipe Pondé “o filósofo” falando sobre filosofia ou política por vezes é semelhante a assistir nos dias atuais um enterro seguido por um cortejo carpideiras. É tão inveraz que às vezes se ri, às vezes se chora.

Raro é vê-lo produzir pensamento no sentido da expressão de alguma originalidade, no sentido da expressão de seu “gênio”. Mesmo assim ora ou outra se aventura em tais tarefas, é neste momento que deparamos com um pensamento opaco, impenetrável ao entendimento e a reflexão.

Em seu discurso, por exemplo, o tema capitalismo converte-se numa doutrina de fé. Em geral não progride, como num argumentum ad nauseam, apenas repete-se cansativamente, uma ladainha fatigante, tétrica que emula de forma enviesada o mito do “eterno retorno do mesmo”. Quando não implica simplesmente em puro niilismo estéril, labirintos, círculos viciosos, antinomias.

No mais das vezes, suas ponderações são sempre paradoxalmente reativas: reclama de pegar pouca mulher, enquanto seus adversários pegam as melhores e mais divertidas. Reclama, reclama, reclama...

Ou seja, a expressão de sua “potência de ser” não consiste na expressão de sua individualidade, de sua singularidade; mas numa reação despeitada diante do mundo como ele inexoravelmente é ou esta.

Isso ocorre porque como poucos na história da filosofia, provavelmente ele tenha se especializado na arte do blá blá blá. Contudo, não seria exagero afirmar que nele esta arte tenha alcançado um alto nível de "sofisticação".

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Ciência, educação e opinião

O sujeito da irracionalidade defende com veemência o direito de "opinar", buscando elevar o preconceito e a ignorância ao mesmo status que possui o conhecimento científico, a razão, a sabedoria e o bom senso. De forma consciente ou inconsciente, porém, seu procedimento promove a deterioração da democracia uma vez que sob o pretexto de defender um princípio democrático submete ou suprime o intelecto e a razão. Todavia, deixar prevalecer a opinião infundada sobre os fatos e os dados objetivos da experiência, da pesquisa, equivale no campo da ciência a deixar prevalecer a força sobre a razão.
É preciso estar atento.
Eis o perigo e eis o cenário da luta a qual estamos expostos.
Nosso papel de educadores, neste sentido, nos convoca a ter uma atitude altiva com relação ao enfrentamento e ao combate das irracionalidades em suas várias vertentes e feições. _Da minha parte a única coisa do campo dos instintos que reconheço e admito prevalecer sobre os fatos e os dados da experiência é o amor, por que como diz Nietzsche, só o amor está sempre além do bem e do mal. Excetuando essa situação idiossincrática, o que muitas vezes não se percebe ao aceitar, ao tolerar o discurso irracionalista como parte do jogo democrático é que em seu interior subjaz a sombra do autoritarismo, da intolerância, do preconceito e consequentemente o embrião de toda discriminação e exclusão social.
A má formação científica entre os educadores tem sido apontada não raras vezes como uma das principais causas do déficit educacional em nosso país. Segundo alguns especialistas, esta deficiência é o que se revela nos baixos índices alcançados por nossos estudantes em exames nacionais e internacionais de verificação do nível de conhecimento (também se revela nos números alarmantes adeptos de teorias conspiratórias que se espalham pelas redes sociais). Embora entrem em jogo nessas avaliações outros aspectos sociais que não só a aprendizagem sistemática é preciso admitir que esta deficiência na formação dos educadores possa ser sim considerada um dos relevantes obstáculos ao desenvolvimento da educação e ao enfrentamento dos problemas que nos cerca e relega nosso povo a um perpétuo estado de subdesenvolvimento.
Obviamente, não é a educação nem são os professores os principais ou os únicos responsáveis por esse estado de coisas ou por sua absoluta resolução. Antes e, sobretudo, é preciso exigir uma efetiva atuação do Estado na elaboração de politicas públicas que promovam as transformações estruturais e substanciais necessárias (Entra as quais a melhoria dos salários é sem sombra de dúvidas um fator preponderante). No entanto, não há como negar o papel de protagonismo que está reservado à educação na superação das desigualdades e do obscurantismo que solapam nossa sociedade ameaçando nossa liberdade e nossa democracia.
É neste sentido que afirmo que contra as crenças obscurantistas transfiguradas sob o signo da "opinião" devemos opor a força iluminadora da razão, a análise criteriosa e objetiva dos fatos e da realidade, o saber cético e crítico da ciência, da razão e da reflexão radical e crítica.
Enfim, não podemos e não devemos ser tolerantes com a intolerância mesmo aquelas transfiguradas numa aparentemente “inofensiva opinião”.

sábado, 17 de novembro de 2018

Avareza

"Não é difícil convencer os seres humanos a quererem mais. Humanos cedem facilmente a cobiça".*

Ser avaro na idade média era considerado uma "coisa ruim", isto é, atribuía-se um valor moralmente negativo para avareza. Desta forma, continha-se a cobiça e a sociedade seguia adiante razoavelmente equilibrada, quer dizer, pobres e pequenos comerciantes eram contidos em seu impeto de consumo enquanto a nobreza gozava e ostentava seu luxo.

Mas a modernidade inverteu esse antigo valor moral, inverteu o mundo. Uma vez que na modernidade a cobiça exerce um papel importante ao impulsionar a produção industrial e comercial. 

Neste cenário a avareza torna-se um valor positivo. O mundo moderno, portanto, ira promover um verdadeiro culto da cobiça já que neste novo cenário ela constitui o verdadeiro motor para o desenvolvimento econômico.

*(Cf. Yuval Harari)

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

O Sacrifício


O Sacrifício
O projeto econômico do novo governo se encarado de forma absolutamente isenta, se encarado de maneira formal, pode de fato ser considerado absurdamente racional (poderíamos ter usado a expressão – estupidamente racional, sem temer cometer qualquer excesso linguístico, qualquer erro. Se e somente se os leitores tomassem ao pé-da-letra a interpretação das palavras, dos signos; quero dizer, supondo que a leitura fosse também e tão somente um ato estritamente racional – assim sendo; teríamos, portanto, uma interpretação literal dos termos. Mas será?). Isso se ignorássemos todas as “circunstancias politicas” que cercam os atos de uma administração pública, os atos de quem governa um país, uma república. Somente nessa hipotética e improvável circunstancia, poderíamos encará-lo assim: Um projeto absurdamente racional (estupidamente).

Por conseguinte, ‘o Brasil do futuro’, imaginado nesse, ‘digamos’, arrojado projeto econômico será um país para poucos. Ora, pode-se considerar que seja um projeto econômico em amplo aspecto. É o próprio Paulo Guedes quem expressa de forma direta e contundente, sem rodeios, essa necessidade. Ao menos foi o que quis transparecer ao afirmar em entrevista recente que “terá que haver sacrifícios!”.

A receita é relativamente simples, se há um “mal” a ser espiado numa sociedade tribal/oligárquica, há que haver um sacrifício. Não obstante, quando se fala em sacrifícios em um país como o Brasil nunca se quer dizer de fato ‘o sacrifício de todos’; e, se há sacrifícios, também devemos considerar que historicamente é sempre o corpo a ser molestado, açoitado, flagelado. Mormente, os corpos imolados nunca são os corpos das elites; mas enquanto outrora era o corpo dos negros, dos índios, dos degredados, hoje tomam seus lugares os corpos dos pobres, das minorias, dos trabalhadores. Isso simplesmente por que, numa democracia, o povo é o corpo.

Essa divagação nada tem de oposicionista, de pessimista, de moralista, não aspira sequer fazer simples crítica ao projeto. Exercita no máximo uma reflexão breve e objetiva do que está em jogo (estou em dúvida se se trata de uma fria ou apaixonada observação). É provável, e acredito nisso com um bom grau de franqueza, que se o economista levar a termo seu projeto, ao final e ao cabo, o país terá sido passado a limpo. Teremos, enfim, nossa pequena revolução burguesa, projeto retardatário de modernidade.

Mas não há como ignorar que há um preço a ser pago. Por aqui e por ali, como quem lança pistas, o economista vai revelando indícios; vai revelando seu preço: “salvar a indústria, apesar dos industriários”. Do mesmo modo, e por extensão poderíamos entrever proposições tais como “salvar a agricultura, apesar dos agricultores”; “salvar o comércio, apesar dos comerciantes”. E, por fim, quem sabe “salvar o Brasil, apesar dos brasileiros” (alguns pelo menos). É e sempre foi assim, não na pequena história do Brasil, mas na grande História, na história dos povos, da humanidade.

Por fim, o mundo segue adiante, apesar dos sacrifícios. Aliás, para concluir, não seria incorreto observar que o 'arrojado projeto econômico' pressupõe uma coerência lógica tecnicista, lógica que parece seguir um principio básico da física: “não é possível acelerar, mudar de trajetória, ultrapassar determinados limites num corpo em movimento inercial senão abandonando um tanto de carga”. Senão deixando para trás um pedaço do seu próprio corpo. Que significa isso, senão um sacrifício!?  

sexta-feira, 14 de abril de 2017

O último dia

O que você faria se soubesse que tem somente mais um dia de vida?


Pedro acordava todos os dias às cinco da manhã, detestava faltar ao trabalho. Os motivos e justificativas para sua resiliente assiduidade, porém não eram tão nobres. Era um sujeito convencional, tíbio mesmo e temia apenas ser demitido. Bem, há quem pense que seja perfeitamente normal que um sujeito se preocupe em perder seu emprego e isto justifique suficientemente sua prudente, porém pusilânime dedicação. Mas, convenhamos, viver uma vida de trabalho sob a ameaça da demissão não é fácil para ninguém, aliás, não é nada saudável. E o ambiente competitivo de sua empresa criava esse tipo de tensão e expectativa. 'A meta ou a rua', esse era o mantra do terror. _ A bem da verdade, suas tripas ora se contraiam, ora destendiam e se agitavam. Algumas vezes sofria com a constirpação, outras com a danação. E assim era, todas as noites de domimgos quando lembrava das metas, do trabalho. E, mesmo não gostando nem um pouco do seu emprego, lhe causava ainda mais mal pensar na ideia de mudar, tinha verdadeira ojeriza por mudanças. Também considerava vagabundos "aqueles sujeitos desempregados". Pensava assim, mesmo daquelas pessoas nas filas de emprego por aí. "Mais uma arruaça!" Detestava arruaça. Paranoicamente, imaginava sempre haver alguém conspirando para puxar-lhe o tapete no trabalho e tomar-lhe a promoção; mesmo sabendo que nos últimos dez anos não houvera promoção alguma em sua empresa. (- É uma questão de contenção de despesa! Afirmava a chefia; – nossos colaboradores precisam compreender - complementavam)[1]. Mesmo assim, cogitava ele, "quando forem liberadas as promoções, quero estar qualificado".
Na última terça-feira, há uma semana aproximadamente, porém, Pedro faltou ao trabalho, - coisa absolutamente rara! O pessoal do RH informou que - foi por “problemas de saúde”. Teve que ir ao consultório médico pegar o resultado de uns exames que havia feito – ultimamente vinha sofrendo de fortes dores de cabeça e nos últimos dez anos, como dito, recusava-se a faltar, nem mesmo tirava suas folgas-prêmio. No entanto, um desmaio na última semana o levou a uma quebra na sua rotina "a coisa apertou, tive que procurar um médico".
Ficamos sabendo depois que ele tinha recebido um diagnóstico de câncer na cabeça que dizia o seguinte: câncer na base anterior de seu lobo frontal. Para o médico, o câncer estava tão próximo de seu hipotálamo que na verdade ele não conseguia explicar como Pedro ainda estava vivo, andando e se comunicando.
Talvez as doses cavalares de analgésicos que ele vinha tomando nos últimos dias pudesse explicar alguma coisa, mas sua sobrevida para o experiente neurologista era um verdadeiro fenômeno. Ao que se sabe o médico foi duro, direto, sem rodeios no diagnóstico e explicou como quem lesse um obituário: - Bem, senhor Pedro, as noticias não são boas. O tumor em sua cabeça encontra-se já em estado tão avançado que há em seu crânio uma verdadeira bomba relógio. Suspeita-se que seja um tumor maligno, visto que seu crescimento, sua multiplicação celular parecia estar acontecendo numa taxa tão exponencialmente alta. Neste ritmo sua sobrevida poderia até ser calculada em horas, restando inevitavelmente pouco tempo para que o câncer atinja seu hipotálamo e detone seu sistema nervoso central colapsando inclusive o sistema nervoso autônomo, o que implicará numa consequente falência dos seus órgãos. Por esta razão devo alertá-lo que é quase certo que o senhor dispõe de no máximo mais algumas horas de vida.
Pedro ouviu tudo aquilo com um olhar distante e vazio, parecia meio desligado. Na verdade estava concentrado, apenas lembrara que havia esquecido seu grampeador em cima da mesa, certamente um de seus colegas estaria usando seu grampeador - cogitava.
Para o médico não era possível decifrar na expressão facial de Pedro se ele atinava para a seriedade da situação, para a gravidade de seu diagnóstico ou se estava em estado de choque. O estranhamento do médico só aumentou quando viu seu paciente se levantar da cadeira e sair da sala cumprimentando-o, desejando-lhe um bom dia e um 'até breve'. Diante disso, Dr. Renato, experiente neurologista, não teve dúvidas, de fato seu paciente estava em estado de choque. Pensou em perguntar se Pedro estava acompanhado, mas hesitou...
Pedro não tinha parentes na cidade e há pelo menos dez anos não entrava em contato com sua família. O motivo não se sabe, mas tudo indica que tenha simplesmente se afastado e deixado de se comunicar. Logo o tempo e a distância tornaram-se eles mesmos um constrangedor empecilho. A partir daí por bloqueio ou vergonha passou a evitar o contato. Razão pela qual os laços fraternos foram se esgarçando como um velho tecido. Tanto que sequer sabia dizer se seus pais estavam vivos ou mortos. Ao que parece essas coisas de família não lhe interessavam mais, entediavam-no mesmo.
No dia seguinte, o som estridente de seu despertador soou às cinco da manhã, era então quarta-feira. Não costumava tomar banho antes de sair para trabalhar. Usava lenços umedecidos. Apesar de ter um moderno e agradável chuveiro em seu banheiro, seguiu a mesma rotina de sempre. Levantou-se. Sempre pelo lado direito da cama. Enfiou os pés nas sandálias. Desligou o alarme. Deu a volta na cama e apanhou seu relógio de pulso que deixava na estante, sempre do lado oposto. Não se espreguiçou, apenas rumou para o banheiro. Parou diante do espelho e se olhou por uns segundos, como se houvesse notado alguma coisa estranha, mas, nada. Começou sua sessão de lenços umedecidos nas axilas, no pescoço, nas genitálias. Em seguida jogou um pouco de água no rosto. Fez um gargarejo. Cuspiu na pia. Olhou de um lado para o outro o rosto, "a barba ainda esta boa". Vestiu-se andando. Não costumava presta atenção em detalhes, a camisa tinha dois vincos na manga, a calça também.
Aproxima-se do horário em que apanha o 907, no ponto em frente ao seu edifício. "Se perder o 907, vou ter que pegar pelo menos duas conduções até o trabalho; não quero correr o risco de me atrasar". Tomou um gole de café amanhecido e frio e saiu. 
Apesar de pegar o mesmo motorista e o mesmo cobrador há quase dez anos, não costuma falar com ninguém e, quando falava, balbucia somente monossílabos, vez ou outra dissílabos, se necessário. Com os outros passageiros, nem pensar, preferia preencher as palavras cruzadas que baixara num aplicativo do celular. No ponto próximo a Paulista desceu de cabeça baixa e andou mais duas quadras, atravessando por uma praça com belos jardins. Nem conseguira perceber que apesar do clima as azaleias floresciam. Entra no edifício Montreal, o elevador é lento, cheio e o ar condicionado está quebrado, _ tanto faz! São pelo menos cinco paradas até chegar ao seu piso, mesmo assim, insere seu cartão exatamente no horário.
Sua mesa fica distante de qualquer janela, em todo caso a mais próxima dá para a parede do prédio vizinho, é cinza o dia todo! Em sua baia descobre que de fato alguém usou seu grampeador, "provavelmente Eduardo, o gordo, está sem grampos"! Olha meio emburrado para os lados e da início a sua rotina. Basicamente, carimbos, registros eletrônicos e escaneamento de documentos pertinentes a contratos de seguros. A julgar pelo volume de documentos em sua mesa o dia ia ser longo. Dia comum, maçante. Apesar da insatisfação e da rotina, vendeu todas suas férias nos últimos anos. Quem sabe venderia a deste ano também!?
Aproxima-se a hora do almoço, seu colega de baia convida-o para almoçar: - hoje tem feijoada no restaurante do primeiro andar! - Não, obrigado, pedi uma marmita. A marmita barata já está quase fria, o alface dentro da comida já está murcho, e o tomate por cima da comida dá ao arroz um desagradável sabor azedo. Come tudo na sala do refeitório da empresa. Tem pressa, "há muito o que fazer"!
O retorno rápido ao trabalho lhe causa alguma náusea, mas nada que alguns analgésicos não resolvam. Desde há algum tempo passou a tomar analgésicos por qualquer motivo. Durante o resto da tarde, chega a ouvir o ruído da chuva que nos últimos dias tem caído no meio da tarde. O clima varia tanto nesta época do ano em São Paulo que se tem a impressão de ter vivido pelo menos três estações em único dia. Calor ao meio dia, chuva no meio da tarde e frio ao entardecer. O tempo escoa lento, porém implacável. Mas, a monotona rotina o detém entre carimbos, transcrições e digitações.
No fim do expediente algo de inusitado acontece, os colegas o convidam para um happy hour, - Pedro, hoje vamos tomar uma cerveja e ver jogo no bar lá da praça! Quer vir conosco? Diante do embaraçoso convite recusa. - Não. Tenho umas coisas para resolver lá em casa. - Ok!
No fim da tarde, um minuto de distração sabe-se lá com o que o atrasa, mas, enfim, consegue pegar seu ônibus, que, no entanto, quebra a cerca de três quadras de sua casa. Sem alternativa, decide seguir o resto do percurso a pé. O dia ainda estava claro e a chuva do meio da tarde havia deixado o céu azul e límpido como nunca para este horário. O frescor do ocaso favorecia e as pessoas se juntavam nos bares e nas mesas dá calçada para o happy hour. Não prestou muito atenção, como sempre baixou a cabeça a apertou o passo rumo ao seu destino.
Na porta do apartamento sentiu algo estranho. Cismou por uns segundos antes de enfiar a chave na fechadura, ponderou..., parecia considerar algo, mas mesmo assim, num movimento quase que mecânico, quase que automático, virou a chave. Tonteou e caiu ali mesmo. Só sobre a soleira...
Encontraram-no assim mesmo no dia seguinte, metade do corpo para dentro do apartamento e as pernas para fora, meio que encolhido numa posição fetal. Comentavam no dia seguinte durante seu velório.
Após o enterro os colegas de trabalho resolveram tomar 'uma' num boteco ali mesmo, próximo ao cemitério. Foi Eduardo, o gordo, herdeiro oficial das miudezas de escritório de Pedro, quem puxou o assunto...
- O que vocês fariam se soubessem que tinham somente mais um dia de vida?




[1] Muito embora, os últimos três balancetes trimestrais da empresa tivessem apresentado apenas índices positivos.