O acaso segundo os supersticiosos (Parte I)
Tenho uma amiga e colega de
trabalho que não acredita em “acaso”. Segundo sua visão mística do mundo, todos
os fatos estão misteriosamente “conectados”. Até aqui sem problemas. Porque, o
misticismo e a superstição têm sido uma marca permanente da cultura popular ao
longo dos séculos. E sobre tudo, constitui uma característica típica do senso
comum.
O que causa estranhamento é imaginar
como ela consegue conciliar essa visão de mundo com sua formação de cientista (social)?
Como é possível afirmar a validade de uma explicação científica dos fatos ou
fenômenos sociais, admitindo ao mesmo tempo haver conexões ocultas e
transcendentais que escapam a capacidade de penetração e abstração dos mais
perspicazes dos sociólogos? Eles não são infalíveis sabemos; porém, esta
constatação não nos permite invalidar todo seu arcabouço teórico. Ao passo que admitir que existam conexões ‘ocultas’
ou sobrenaturais que expliquem ou determinem o funcionamento da natureza invalidaria qualquer proposição teórica ou científica.
Esta contradição opõe de forma clara e irremediável estas duas visões de mundo, a científica e a religiosa ou supersticiosa. Trocando em
miúdos, temos de um lado, uma visão de mundo que nega de forma peremptória a
existência do acaso (ou ao menos em certas ocasiões), admitindo haver conexões ocultas
entre fenômenos aparentemente desconexos, mas, sobretudo, afirmando que o elo
entre fenômenos que coincidem encontram-se não no plano da explicação material
da realidade; mas num plano imaterial, melhor dizendo, num plano espiritual, sobrenatural
da realidade.
Do outro lado, teríamos que aceitar que parecesse, no mínimo, estranho aos olhos e soasse ao menos absurdo aos
ouvidos de um Comte, de um Max Weber, de um Durkheim, e, sobretudo ao
intelecto ardiloso do velho Marx a admissão da existência de uma "força" sobrenatural explicando e determinando o funcionamento dos fenômenos naturais. Mesmo admitindo que, para algum destes ‘cientistas
sociais’, houvesse realmente alguma conexão entre eventos aparentemente distintos
da realidade social, ou seja, “que não houvesse acaso”, tais conexões seriam investigadas na "realidade" e expressas
em suas elaborações teóricas por meio de abstrações formais e conceitos que teriam como
objetivo desvelar o caráter ‘positivo’ do qual, em última instância seriam compostos a incógnita que conecta estes mesmos fenômenos. A exemplo, conceitos como os de “fato
social”, “fenômeno social”, “condições materiais” etc., se assentam sobre princípios,
causas ou leis que expressam, como dito, alguma conexão entre fenômenos dispares, e, emergem duma
investigação radical acerca dos elos que constituem positivamente a tessitura
social.
Bem, quando lá acima nos referimos
ao termo “mística” não quisemos dizê-lo num sentido clássico, tal como a
mística de um Mestre Eckhart. Consequentemente, podemos inferir que minha amiga é mística no sentido mais popular do
termo. Basicamente, ela é uma daquelas pessoas que possui pedras que, segundo sua visão supersticiosa do mundo, concentram
energias “cósmicas”, uma pessoa daquelas que recita mantras, que constrói mandalas, que
acredita em feitiços, correntes de pensamento positivo e coisas afins. É, enfim, uma daquelas pessoas que acredita que todas as coisas e seres estão repletos de magia
e poderes sobrenaturais. É mormente uma pessoa supersticiosa. Este é o
sentido ao qual me referi, à mística. Uma mistica, digamos, “bem popular”.
Pode parecer leviano comparar
assim essas concepções místicas; mas, de fato, se observarmos a concepção
mística popular, a superstição, verificaremos que ela soa muito mais caótica,
aja vista padecer de qualquer elaboração ou organização sistemática que àquela mística
que aqui denominamos de clássica. É praticamente impossível que este fato passe
despercebido aos olhos de um cientista social, por exemplo, uma vez que torna evidente
seu caráter desarticulado e precário. No entanto, aos olhos dos adeptos desta
dita “mística popular” esta precariedade é somente aparente, pois, segundo alegam, na verdade
sob este manto de precariedade e desarticulação se oculta uma complexidade tão
profunda que as mentes ‘quadradas’ e ‘formatadas’ dos estudiosos são “incapazes
de alcançar”. Neste sentido, argumentam ser coisa para iniciados. Outros dizem -
com certo ar de superioridade, esta mística complexa e popular se aproxima da
física quântica na medida em que demonstra-se profundamente quase que incognoscível! Quem
diria física quântica....
Bem, voltando ao “acaso”. No
sentido em que afirma minha amiga, neste sentido, se você for a um lugar e ‘trombar’
com uma pessoa a quem muito estima e que há anos não via, “isto”, este evento certamente
possui uma explicação transcendental, uma vez que não acontece por acaso. Segundo
elas, haveria uma força oculta, conspirando para que esse encontro acorresse. Neste
mesmo sentido, podemos considerar que se você caminha descontraído por uma
calçada e, de repente, numa curva, numa esquina, uma telha se desloca do
telhado de uma casa e cai sobre sua cabeça, isso não ocorre por acaso. Muito
embora você não tivesse nenhuma ligação ou estivesse pensando na telha ou coisa parecida. Este fato que
podemos considerar um acidente trágico, não acontece, segundo esta concepção ‘mística
e complexa’, "por acaso”. Aconteceu por que tinha que acontecer! É
como se sua trajetória e a da telha tivessem sido pré-estabelecidas,
pré-determidas desde há muito tempo por forças estranhas; por forças alheias a
sua vontade e ocultas a sua consciência. O que neste contexto místico e complexo faz
bastante sentido, uma vez que as coisas no mundo estão absolutamente
emaranhadas nas redes de um tecido do qual somente os místicos, os iniciados
fazem alguma ideia.
Buscando desemaranhar esta concepção
de mundo, esta concepção de realidade, poderíamos justapor o conceito de
“coincidência” presente no não tão popular dicionário Houaiss. Neste dicionário coincidência significa: “ato ou efeito de coincidir;
igualdade, identidade de duas ou mais coisas; ocupação do mesmo espaço; justaposição;
realização simultânea de dois ou mais acontecimentos; simultaneidade;
ocorrência de eventos que, por acaso, se dão ao mesmo tempo e que parecem ter
alguma conexão entre si; concorrência de coisas para um mesmo fim”.
Ora, neste sentido, o mundo esta evidentemente repleto de coincidências.
Por exemplo, agora eu me encontro diante do computador escrevendo; pode parecer
ridículo, mas é uma coincidência no mesmo sentido que é asseverado na definição
do Houaiss.
Sendo assim, podemos verificar que ocorre o tempo inteiro um sem número de coincidências às quais não damos a menor atenção, em contraposição há um número absurdamente pequeno, diria eu quase escasso, de coincidências que, em circunstancias particulares, nos chamam atenção, somente a estas chamamos de "não acasos" e atribuímos significado especial. Assim, percebe-se aqui que é absolutamente arbitrário os casos em que atribuímos significado às coincidências. Basicamente, é o sujeito quem decide que ou quais coincidências ele chamará de "não-acasos”.
Bem, o ser humano vive num universo que é extremamente
simbólico. Aliás, como bem verifica Levi-Strauss, estamos imersos numa
estrutura tal que não é possível dissociar o fundo cultural e social do
individuo. Ousaria dizer que na concepção estruturalista, o fundo é “no fundo”
o individuo. Fato que justificaria nossa busca quase que incansável por
sentido, por um sinal em tudo o quanto vivenciamos. Sob este aspecto, não é exagero afirmar que o homem é por natureza um ser de símbolos, um animal simbólico,
cujas ações mais fundamentais consiste em atribuir símbolos, signos e
significados às coisas. É sua condição subjacente, àquilo
que ousamos denominar de “natureza humana” (num sentido cultural)... Sendo assim, podemos verificar que ocorre o tempo inteiro um sem número de coincidências às quais não damos a menor atenção, em contraposição há um número absurdamente pequeno, diria eu quase escasso, de coincidências que, em circunstancias particulares, nos chamam atenção, somente a estas chamamos de "não acasos" e atribuímos significado especial. Assim, percebe-se aqui que é absolutamente arbitrário os casos em que atribuímos significado às coincidências. Basicamente, é o sujeito quem decide que ou quais coincidências ele chamará de "não-acasos”.
"...não exagero em afirmar que o homem é por natureza um animal de símbolos, um animal simbólico, cuja alguma das ações mais fundamentais consiste em atribuir símbolos, signos e significados às coisas..."
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