domingo, 22 de novembro de 2015

Notas sobre obstáculos epistemológicos


Creio que provavelmente uma das boas contribuições que o filósofo Gaston Bachelard legou para a posteridade filosófica tenha sido seu conceito de “obstáculo epistemológico”. Porém, quando se busca apreender na obra epistemológica do filósofo francês o sentido dado pelo mesmo ao conceito de obstáculo epistemológico, a primeira impressão é, para a maior parte dos leitores, que não se trata de uma; mas de várias definições para o mesmo conceito. Entretanto, arriscamos a afirmar que muito embora, sob certo aspecto, o filósofo faça realmente variar "os conceitos", de tal sorte que não se possa eliminar de maneira definitiva esta impressão, muito provavelmente ela é um tanto apressada.
Estas "supostas" variações podem ser equivocadamente extraídas sobretudo de uma consulta rápida e superficial a algumas de suas obras; porém, uma análise mais detida pode revelar justamente o contrário, isto é, seu verdadeiro intento.
É o que se pode inferir daquelas obras onde o epistemólogo abordado o tema de maneira especifica, como, por exemplo, na obra A formação do espirito científico, de 1938. Porém, seu desapego a fixidez, a rigidez dos conceitos constitui justamente o aspecto intrinsecamente polêmico, que marca de uma obra que tem no conflito, na desconstrução e na ressignificação dos conceitos sua característica fundamental.

Ora, se como define o filósofo “uma ideia clara dentro de um domínio de investigações pode deixar de iluminar em outro domínio” (BACHELARD. El compromiso), a ressignificação dos conceitos deve caracterizar o trabalho essencial e primeiro do exercício filosófico.
Por esta razão, quando o sujeito ingênuo presume um conhecimento adquirido, imagina-o muitas vezes como um edifício rigidamente construído, cuja estrutura jamais poderá ser abalada. Pensa ter chegado a um principio da razão, semelhante àquele principio cartesiano do cogito. Dentro da lógica epistemológica de Bachelard, esta ideia é a um só tempo sedutora e perigosa.
Perigosa, sobretudo para o homem que se pretende contemporâneo da ciência.
Aqui esta a contribuição e a razão da índole polêmica da filosofia cientifica de Gaston Bachelard. Para o filósofo cada novo conhecimento na ciência altera toda a estrutura da ciência o que exige por sua vez uma ressignificação dos conceitos, principalmente, no campo da filosofia da ciência, suponde que esta disciplina pretenda manter-se em dialogo constante com o conhecimento científico de seu tempo.

É interessante observar que esta proposição feita primeiramente por um filósofo da ciência no início do século XX, tenha consonância com os avanços científicos atingidos por um ramo inteiramente novo do conhecimento e da ciência  que é a neurociência.
Segundo descobertas recentes da neurociência cada novo conhecimento adquirido pelo sujeito, afeta de forma estrutural sua mente, ou seja, sua composição neuronal. Basicamente, é como se a entrada de um novo elemento (conhecimento, informação ou dado) levasse a uma completa reorganização da estrutura cognitiva como um todo - esta característica recebe o nome de ‘plasticidade neural e cognitiva’.
Há nessa descoberta a desconstrução definitiva da imagem do conhecimento como edifício. A partir daqui o conhecimento ganha, como postulava Bachelard, uma forma móvel, uma estrutura complexa e dinâmica, sujeita a constantes ressignificações. Conforme o filósofo: “O conhecimento científico se constrói em reconstrução, isto é, na medida em que destrói aquele conhecimento já edificado.” (BACHELARD, Le nouvel esprit scientifique)

Neste sentido, o conservadorismo é identificado não somente como uma categoria perniciosa em suas vinculações culturais, mas principalmente em suas vinculações epistemológicas. Numa de suas denúncias o filósofo afirma que conservadorismo e avareza são categorias solidarias que constituem verdadeiros obstáculos epistemológicos, como se pode verificar no trecho a seguir:
“Mesmo na mente lúcida, há zonas obscuras, cavernas onde ainda vivem sombras. Mesmo no novo homem, permanecem vestígios do homem velho. Em nós, o século XVIII prossegue sua vida latente; infelizmente, pode até voltar. Não vemos nisso, como Meyerson, uma prova da permanência e da fixidez da razão humana, mas antes uma prova da sonolência do saber, prova da avareza do homem erudito que vive ruminando o conhecimento adquirido, a mesma cultura, e que se torna, como todo avarento, vitima do ouro acariciado.” (BACHELARD, A formação.)
Deste modo, podemos concluir por hora que a aparente falta de unidade, a aparente indefinição dos conceitos em Bachelard tem um proposito absolutamente claro, indicar um caminho para uma epistemologia parceira da ciência de seu tempo. E portanto, sua complexa definição do conceito de obstáculo epistemológico pretende atender uma exigência metodológica sua – harmonizando a definição ao contexto de construção ou descoberta do conhecimento científico.

1934. nouvel esprit scientifique. Paris: PUF. (Tradução brasileira de Joaquim José Moura ...(et al.). – 2ª ed. – São Paulo : Abril Cultural, 1984. Col. Os Pensadores)
1938. La formation de lésprit scientifique: contribution  à une prychanalyse de la connaissanceobjective. Paris: Vrin. (Tradução brasileira de Estela dos Santos Abreu. – Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.) 

1972. L’engagement rationaliste. Coletânea póstuma de textos, prefácio de G. Canguilhem, PUF. (Tradução espanhola de Hugo Beccacece. – Mexico: Siglo Veintiuno, 1985.)