domingo, 22 de novembro de 2015

Notas sobre obstáculos epistemológicos


Creio que provavelmente uma das boas contribuições que o filósofo Gaston Bachelard legou para a posteridade filosófica tenha sido seu conceito de “obstáculo epistemológico”. Porém, quando se busca apreender na obra epistemológica do filósofo francês o sentido dado pelo mesmo ao conceito de obstáculo epistemológico, a primeira impressão é, para a maior parte dos leitores, que não se trata de uma; mas de várias definições para o mesmo conceito. Entretanto, arriscamos a afirmar que muito embora, sob certo aspecto, o filósofo faça realmente variar "os conceitos", de tal sorte que não se possa eliminar de maneira definitiva esta impressão, muito provavelmente ela é um tanto apressada.
Estas "supostas" variações podem ser equivocadamente extraídas sobretudo de uma consulta rápida e superficial a algumas de suas obras; porém, uma análise mais detida pode revelar justamente o contrário, isto é, seu verdadeiro intento.
É o que se pode inferir daquelas obras onde o epistemólogo abordado o tema de maneira especifica, como, por exemplo, na obra A formação do espirito científico, de 1938. Porém, seu desapego a fixidez, a rigidez dos conceitos constitui justamente o aspecto intrinsecamente polêmico, que marca de uma obra que tem no conflito, na desconstrução e na ressignificação dos conceitos sua característica fundamental.

Ora, se como define o filósofo “uma ideia clara dentro de um domínio de investigações pode deixar de iluminar em outro domínio” (BACHELARD. El compromiso), a ressignificação dos conceitos deve caracterizar o trabalho essencial e primeiro do exercício filosófico.
Por esta razão, quando o sujeito ingênuo presume um conhecimento adquirido, imagina-o muitas vezes como um edifício rigidamente construído, cuja estrutura jamais poderá ser abalada. Pensa ter chegado a um principio da razão, semelhante àquele principio cartesiano do cogito. Dentro da lógica epistemológica de Bachelard, esta ideia é a um só tempo sedutora e perigosa.
Perigosa, sobretudo para o homem que se pretende contemporâneo da ciência.
Aqui esta a contribuição e a razão da índole polêmica da filosofia cientifica de Gaston Bachelard. Para o filósofo cada novo conhecimento na ciência altera toda a estrutura da ciência o que exige por sua vez uma ressignificação dos conceitos, principalmente, no campo da filosofia da ciência, suponde que esta disciplina pretenda manter-se em dialogo constante com o conhecimento científico de seu tempo.

É interessante observar que esta proposição feita primeiramente por um filósofo da ciência no início do século XX, tenha consonância com os avanços científicos atingidos por um ramo inteiramente novo do conhecimento e da ciência  que é a neurociência.
Segundo descobertas recentes da neurociência cada novo conhecimento adquirido pelo sujeito, afeta de forma estrutural sua mente, ou seja, sua composição neuronal. Basicamente, é como se a entrada de um novo elemento (conhecimento, informação ou dado) levasse a uma completa reorganização da estrutura cognitiva como um todo - esta característica recebe o nome de ‘plasticidade neural e cognitiva’.
Há nessa descoberta a desconstrução definitiva da imagem do conhecimento como edifício. A partir daqui o conhecimento ganha, como postulava Bachelard, uma forma móvel, uma estrutura complexa e dinâmica, sujeita a constantes ressignificações. Conforme o filósofo: “O conhecimento científico se constrói em reconstrução, isto é, na medida em que destrói aquele conhecimento já edificado.” (BACHELARD, Le nouvel esprit scientifique)

Neste sentido, o conservadorismo é identificado não somente como uma categoria perniciosa em suas vinculações culturais, mas principalmente em suas vinculações epistemológicas. Numa de suas denúncias o filósofo afirma que conservadorismo e avareza são categorias solidarias que constituem verdadeiros obstáculos epistemológicos, como se pode verificar no trecho a seguir:
“Mesmo na mente lúcida, há zonas obscuras, cavernas onde ainda vivem sombras. Mesmo no novo homem, permanecem vestígios do homem velho. Em nós, o século XVIII prossegue sua vida latente; infelizmente, pode até voltar. Não vemos nisso, como Meyerson, uma prova da permanência e da fixidez da razão humana, mas antes uma prova da sonolência do saber, prova da avareza do homem erudito que vive ruminando o conhecimento adquirido, a mesma cultura, e que se torna, como todo avarento, vitima do ouro acariciado.” (BACHELARD, A formação.)
Deste modo, podemos concluir por hora que a aparente falta de unidade, a aparente indefinição dos conceitos em Bachelard tem um proposito absolutamente claro, indicar um caminho para uma epistemologia parceira da ciência de seu tempo. E portanto, sua complexa definição do conceito de obstáculo epistemológico pretende atender uma exigência metodológica sua – harmonizando a definição ao contexto de construção ou descoberta do conhecimento científico.

1934. nouvel esprit scientifique. Paris: PUF. (Tradução brasileira de Joaquim José Moura ...(et al.). – 2ª ed. – São Paulo : Abril Cultural, 1984. Col. Os Pensadores)
1938. La formation de lésprit scientifique: contribution  à une prychanalyse de la connaissanceobjective. Paris: Vrin. (Tradução brasileira de Estela dos Santos Abreu. – Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.) 

1972. L’engagement rationaliste. Coletânea póstuma de textos, prefácio de G. Canguilhem, PUF. (Tradução espanhola de Hugo Beccacece. – Mexico: Siglo Veintiuno, 1985.)

domingo, 30 de agosto de 2015

Ensaio sobre o acaso ou Não existe acaso?

O acaso segundo os supersticiosos (Parte I)

Tenho uma amiga e colega de trabalho que não acredita em “acaso”. Segundo sua visão mística do mundo, todos os fatos estão misteriosamente “conectados”. Até aqui sem problemas. Porque, o misticismo e a superstição têm sido uma marca permanente da cultura popular ao longo dos séculos. E sobre tudo, constitui uma característica típica do senso comum.
O que causa estranhamento é imaginar como ela consegue conciliar essa visão de mundo com sua formação de cientista (social)? Como é possível afirmar a validade de uma explicação científica dos fatos ou fenômenos sociais, admitindo ao mesmo tempo haver conexões ocultas e transcendentais que escapam a capacidade de penetração e abstração dos mais perspicazes dos sociólogos? Eles não são infalíveis sabemos; porém, esta constatação não nos permite invalidar todo seu arcabouço teórico. Ao passo que admitir que existam conexões ‘ocultas’ ou sobrenaturais que expliquem ou determinem o funcionamento da natureza invalidaria qualquer proposição teórica ou científica.
Esta contradição opõe de forma clara e irremediável estas duas visões de mundo, a científica e a religiosa ou supersticiosa. Trocando em miúdos, temos de um lado, uma visão de mundo que nega de forma peremptória a existência do acaso (ou ao menos em certas ocasiões), admitindo haver conexões ocultas entre fenômenos aparentemente desconexos, mas, sobretudo, afirmando que o elo entre fenômenos que coincidem encontram-se não no plano da explicação material da realidade; mas num plano imaterial, melhor dizendo, num plano espiritual, sobrenatural da realidade.
Do outro lado, teríamos que aceitar que parecesse, no mínimo, estranho aos olhos e soasse ao menos absurdo aos ouvidos de um Comte, de um Max Weber, de um Durkheim, e, sobretudo ao intelecto ardiloso do velho Marx a admissão da existência de uma "força" sobrenatural explicando e determinando o funcionamento dos fenômenos naturais. Mesmo admitindo que, para algum destes ‘cientistas sociais’, houvesse realmente alguma conexão entre eventos aparentemente distintos da realidade social, ou seja, “que não houvesse acaso”, tais conexões seriam investigadas na "realidade" e expressas em suas elaborações teóricas por meio de abstrações formais e conceitos que teriam como objetivo desvelar o caráter ‘positivo’ do qual, em última instância seriam compostos a incógnita que conecta estes mesmos fenômenos. A exemplo, conceitos como os de “fato social”, “fenômeno social”, “condições materiais” etc., se assentam sobre princípios, causas ou leis que expressam, como dito, alguma conexão entre fenômenos dispares, e, emergem duma investigação radical acerca dos elos que constituem positivamente a tessitura social.
Bem, quando lá acima nos referimos ao termo “mística” não quisemos dizê-lo num sentido clássico, tal como a mística de um Mestre Eckhart. Consequentemente, podemos inferir que minha amiga é mística no sentido mais popular do termo. Basicamente, ela é uma daquelas pessoas que possui pedras que, segundo sua visão supersticiosa do mundo, concentram energias “cósmicas”, uma pessoa daquelas que recita mantras, que constrói mandalas, que acredita em feitiços, correntes de pensamento positivo e coisas afins. É, enfim, uma daquelas pessoas que acredita que todas as coisas e seres estão repletos de magia e poderes sobrenaturais. É mormente uma pessoa supersticiosa. Este é o sentido ao qual me referi, à mística. Uma mistica, digamos, “bem popular”.
Pode parecer leviano comparar assim essas concepções místicas; mas, de fato, se observarmos a concepção mística popular, a superstição, verificaremos que ela soa muito mais caótica, aja vista padecer de qualquer elaboração ou organização sistemática que àquela mística que aqui denominamos de clássica. É praticamente impossível que este fato passe despercebido aos olhos de um cientista social, por exemplo, uma vez que torna evidente seu caráter desarticulado e precário. No entanto, aos olhos dos adeptos desta dita “mística popular” esta precariedade é somente aparente, pois, segundo alegam, na verdade sob este manto de precariedade e desarticulação se oculta uma complexidade tão profunda que as mentes ‘quadradas’ e ‘formatadas’ dos estudiosos são “incapazes de alcançar”. Neste sentido, argumentam ser coisa para iniciados. Outros dizem - com certo ar de superioridade, esta mística complexa e popular se aproxima da física quântica na medida em que demonstra-se profundamente quase que incognoscível! Quem diria física quântica....
Bem, voltando ao “acaso”. No sentido em que afirma minha amiga, neste sentido, se você for a um lugar e ‘trombar’ com uma pessoa a quem muito estima e que há anos não via, “isto”, este evento certamente possui uma explicação transcendental, uma vez que não acontece por acaso. Segundo elas, haveria uma força oculta, conspirando para que esse encontro acorresse. Neste mesmo sentido, podemos considerar que se você caminha descontraído por uma calçada e, de repente, numa curva, numa esquina, uma telha se desloca do telhado de uma casa e cai sobre sua cabeça, isso não ocorre por acaso. Muito embora você não tivesse nenhuma ligação ou estivesse pensando na telha ou coisa parecida. Este fato que podemos considerar um acidente trágico, não acontece, segundo esta concepção ‘mística e complexa’, "por acaso”. Aconteceu por que tinha que acontecer! É como se sua trajetória e a da telha tivessem sido pré-estabelecidas, pré-determidas desde há muito tempo por forças estranhas; por forças alheias a sua vontade e ocultas a sua consciência. O que neste contexto místico e complexo faz bastante sentido, uma vez que as coisas no mundo estão absolutamente emaranhadas nas redes de um tecido do qual somente os místicos, os iniciados fazem alguma ideia.
Buscando desemaranhar esta concepção de mundo, esta concepção de realidade, poderíamos justapor o conceito de “coincidência” presente no não tão popular dicionário Houaiss. Neste dicionário coincidência significa: “ato ou efeito de coincidir; igualdade, identidade de duas ou mais coisas; ocupação do mesmo espaço; justaposição; realização simultânea de dois ou mais acontecimentos; simultaneidade; ocorrência de eventos que, por acaso, se dão ao mesmo tempo e que parecem ter alguma conexão entre si; concorrência de coisas para um mesmo fim”.
Ora, neste sentido, o mundo esta evidentemente repleto de coincidências. Por exemplo, agora eu me encontro diante do computador escrevendo; pode parecer ridículo, mas é uma coincidência no mesmo sentido que é asseverado na definição do Houaiss.
Sendo assim, podemos verificar que ocorre o tempo inteiro um sem número de coincidências às quais não damos a menor atenção, em contraposição há um número absurdamente pequeno, diria eu quase escasso, de coincidências que, em circunstancias particulares, nos chamam atenção, somente a estas chamamos de "não acasos" e atribuímos significado especial. Assim, percebe-se aqui que é absolutamente arbitrário os casos em que atribuímos significado às coincidências. Basicamente, é o sujeito quem decide que ou quais coincidências ele chamará de "não-acasos”.
Bem, o ser humano vive num universo que é extremamente simbólico. Aliás, como bem verifica Levi-Strauss, estamos imersos numa estrutura tal que não é possível dissociar o fundo cultural e social do individuo. Ousaria dizer que na concepção estruturalista, o fundo é “no fundo” o individuo. Fato que justificaria nossa busca quase que incansável por sentido, por um sinal em tudo o quanto vivenciamos. Sob este aspecto, não é exagero afirmar que o homem é por natureza um ser de símbolos, um animal simbólico, cujas ações mais fundamentais consiste em atribuir símbolos, signos e significados às coisas. É sua condição subjacente, àquilo que ousamos denominar de “natureza humana” (num sentido cultural)... 

quarta-feira, 22 de julho de 2015

Opinião pública, censura e formação da cidadania


MARCELO CAETANO DA SILVA

Opinião pública, censura e formação da cidadania


Dissertação final da disciplina
FLF5125. Ética e Filosofia
Ministrada pelo Professor Dr. Milton Meira do Nascimento
  
Junho/2015




Opinião pública, censura e formação da cidadania

"A opinião pública, eis o único juiz competente das opiniões particulares, o único censor legítimo dos seus escritos. Se ela os aprovar, com que direito vocês, homens do poder, poderão condená-los?... publicar livremente seus pensamentos... este é o mais sagrado dos deveres que, em relação a outros homens, pode cumprir aquele que é dotado dos talentos necessários para esclarecê-los". ROBESPIERRE, Maximilien. Discours sur la liberté de la Presse, sessão de 11/05/1791. Éditions Hemera, Tomo V, p. 47. Apud NASCIMENTO, p. 73.


Introdução


Este texto faz uma abordagem da ideia de opinião pública presente em dois momentos distintos histórica e geograficamente, permitindo compará-los e perceber aspectos em comum. O que torna possível a analogia entre a Revolução Francesa e o golpe de Estado perpetrado no Brasil em 1964, no que tange à ideia em causa, talvez seja o fato da opinião pública operar constantemente de forma negativa e positiva, ora restringindo e moldando a liberdade individual, ora atuando sobre a capacidade de julgar do povo por intermédio dos canais de comunicação disponíveis.
No contexto da Revolução Francesa, a opinião pública é abordada por um estudo da obra Opinião Pública e Revolução, aqui adotado como referencial teórico, que trata da assimilação do pensamento "de um" Rousseau por dois revolucionários fundadores de uma organização política muito atuante, o Círculo Social, ao mesmo tempo em que indica como viam o papel do intelectual como um educador, agente de transformação, vanguarda. Seguindo o espírito da ilustração, o intelectual será definido por sua aversão ao preconceito e compromisso com a verdade, adotada como um referencial da política; esse seria o caminho para contribuir à formação da soberania popular, entendida como vigilante do exercício do poder político. Claro que o uso da linguagem pelo intelectual engajado será colocado em questão.
Na história da filosofia, a opinião tanto aparece no campo da epistemologia, resultando na cristalização de conhecimento ou preconceito, como no campo da ética, vinculada à formação do costume dos povos. Pensada como expressão do costume de um povo, decorrente de um longo processo de maturação, a opinião pública pode ser um meio de degradação ou de regeneração da humanidade. O aspecto negativo da opinião pública está ligado ao vício do julgamento das aparências, que deturpam o sentido do ser verdadeiro, típico da vida em sociedade. O aspecto positivo, compreende a emancipação do ser humano como dependente da prioridade dada ao que importa à sobrevivência e da rejeição à preferência da moda que escraviza. Preservar os costumes que caracterizam o povo e ao mesmo tempo depurá-los, eis a tarefa difícil do intelectual pedagogo que deve ter aversão ao proselitismo.
Uma das grandes lições do século XVIII indicada pelo Círculo Social era a importância da defesa da liberdade de expressão, caminho salutar para se combater o preconceito e contribuir ao esclarecimento público, e teria sido ainda maior, não fosse a adoção de uma verdade predeterminada, que colocou em risco a reflexão, a crítica e o debate aberto à possibilidade do consenso com outros clubes.  A bandeira do homem de letras na era das luzes era "abaixo a ignorância" e, por conseguinte, abaixo o despotismo. A associação dos amigos da verdade propôs um canal de comunicação entre os agentes da transformação sócio-política e o povo, a "boca de ferro", urna de sugestões que recebia a manifestação do público sobre todos os assuntos de interesse geral, que depois eram depurados e compartilhados em várias publicações periódicas como sendo a vontade geral.
Paradoxalmente, a noção de verdade desses revolucionários - Bonneville e Fauchet - tinha menos de racionalidade e mais de obscurantismo. Estava alicerçada na teoria da palavra criadora, de matriz teológica. O "legislador" teria a missão de promulgar a verdade una, revelar o não dito capaz de libertar o povo da tirania. A sacralização de princípios foi uma estratégia do grupo para atrair adeptos e tentar se sobrepor aos demais grupos políticos revolucionários. O interessante é que não se furtavam ao debate público, condenando a censura à livre manifestação de ideias, acima de tudo, como um sacrilégio. Mas, a opção por uma moral universal como fundamento da política comprometeu a busca por consensos.
No contexto da "revolução brasileira", a opinião pública é objeto de preocupação do grupo político-militar que tomou o poder do Estado à força. Alfredo Buzaid será um dos intelectuais de vanguarda destacado para realizar a proteção ideológica do regime instituído, seja como escritor, orador ou legislador, de direito e de fato. Em Defesa da Moral e dos Bons Costumes, o homem de letras promoverá a defesa da censura a todo tipo de manifestação pública contrária à moral cristã, adotada como fundamento da política dos militares, que visavam garantir a segurança nacional combatendo a ameaça comunista, sorrateiramente infiltrada por intermédio da difusão de obscenidades.
À guisa de garantia à liberdade de produção cultural, científica e artística legítimas, que manifestavam a genialidade nacional sem ferir a moral e os bons costumes, Buzaid envereda na doutrina de dispositivos jurídicos - parágrafo 8º do Artigo 153 da Constituição de 1969 e Decreto-lei 1077 - que tinham a finalidade de assegurar o controle da opinião pública e, consequentemente, o poder intervencionista. E esse controle foi tão extremo que chegou ao ponto de se proibir uma obra antes mesmo de ser publicada. A explanação sobre aspectos legais se fez necessário na medida em que conceitos essenciais não foram satisfatoriamente definidos. Portanto, o papel desempenhado pelo intelectual engajado neste caso foi de fazer proselitismo ideológico. De certa maneira foi bem sucedido, considerando que o regime explorou ideias do senso comum, consolidadas como parte da tradição cultural do povo, vide o apelo à moral cristã e à longa trajetória do direito romano cristão para manter os bons costumes.


Referencial teórico


            Em Opinião Pública e Revolução: aspectos do discurso político na França revolucionária, as publicações assinadas por dois revolucionários franceses, Claude Fauchet e Nicolas de Bonneville, responsáveis pelos princípios doutrinários fundamentais do Círculo Social, associação cultural bastante engajada politicamente, indica a relevância da apropriação da filosofia política de Rousseau durante o período revolucionário, com destaque ao conceito de "opinião pública", que contribui para esclarecer como viam a participação do intelectual no processo de mudança sócio-política.
Se, por um lado, o intelectual deveria ter compromisso com a verdade e ser reconhecido por isso pelo público, por outro lado, esse mesmo público dependia do intelectual para se tornar esclarecido, cumprir seu papel de vigilante do poder político - sendo instituído - e, assim, se tornar o soberano, no lugar da tirania. Portanto, para o Círculo Social o intelectual tinha o caráter de pedagogo militante e cumpriria sua tarefa com a própria capacidade de persuadir, visando moldar a opinião pública por intermédio da imprensa. Vale observar que, aparentemente, à época das luzes havia uma tendência a considerar a relação entre o intelectual e a formação da capacidade de julgar do público. Um esforço se faz necessário, então, para elucidar o processo de formação do conceito de opinião pública, com atenção a um vínculo com a noção teológica de "verbo criador".
            Na tradição filosófica, o conceito de "opinião" aparece na Modernidade relacionado à consciência que o indivíduo tem sobre a veracidade de uma proposição, seja esta assumida como científica ou como mera opinião, mas sempre válida; essa noção subjetiva de verdade é proposta por Hobbes.
Locke concebe a opinião como sendo incerta, por isso inferior ao conhecimento científico; sua probabilidade de aceitação depende da crença resultante de evidências e discursos persuasivos, mesmo que sem segurança quanto à verdade, mas, ainda assim, constituindo a base epistemológica da humanidade e de costumes, das tradições. Daí que com o tempo esse conhecimento provável se consolide como certeza tradicional, a opinião que nascera individual - subjetiva - se transformara em opinião comum; e o conhecimento possivelmente falso adotado como verdadeiro faz com que predomine o preconceito. Mas, há outra concepção de opinião, caracterizada como reputação, o que depende da avaliação pública, portanto, que nasce dos outros, do exterior para determinar o pensamento e ação do indivíduo, ou seja, determinar a conduta moral, a virtude ou o vício. Sendo assim, Locke define os costumes dos povos como originários da estima ou censura de ações diversas tendo como parâmetro a "lei da opinião", manifesta pelo consentimento, julgamento tácito dos membros da sociedade. Nesse sentido, essa "opinião pública" ganha um status de superioridade em relação às leis civis e divinas. Convém observar que "a opinião pública enquanto força racional capaz de exercer uma pressão sobre os indivíduos exige, para se caracterizar como instância julgadora, um processo de esclarecimento, um processo de formação do público, precisa tomar o lugar do preconceito, que nada mais é do que a perpetuação do erro como verdade." (NASCIMENTO, pág. 40)
            A opinião pública aparece na obra de Rousseau "como o conjunto dos costumes de um povo" e, nesse sentido, "não é uma força a ser produzida pelos homens de letras. Possui leis próprias e qualquer interferência em seus domínios só pode ter o objetivo de preservá-la". (NASCIMENTO, pág. 28) Há então um resgate do raciocínio de Locke, mas o cidadão de Genebra adota o conceito de opinião - estima - pública ora como um meio de corrupção moral, tal pensamento aparece no 2º Discurso, ora como um caminho à recuperação do humano que fora corrompido pelas relações sociais, tal como proposto nas Considerações sobre o Governo da Polônia.
            Por um lado, a degradação humana começa com o desenvolvimento da sociabilidade, pois o indivíduo que antes era puro pelo isolamento passa a valorizar a estima do outro e, com isso, a ser vaidoso, invejoso, a ter desprezo, vergonha, e essa competição de vícios resulta na desigualdade, que comprometeu a felicidade de todos; a sociabilidade acarretou o apreço à "consideração", o olhar do outro, e com isso um princípio de civilidade baseado nas aparências; parecer se tornou mais importante do que ser. Por esse viés, a estima está vinculada ao vício por conta da alienação, do julgamento falso da aparência. Há uma relação proposta entre estima pública e cidadania viciada; a submissão do indivíduo à opinião pública consiste num obstáculo à liberdade, isso por não valorizar o necessário à conservação da vida, por não empregar a razão a fim de evitar o julgamento preconceituoso, razão que media opinião e sentimento, preservando o que é útil e rejeitando o aparente que escraviza. Se o ser humano artificial, condenado ao modismo do aparente enseja preferências, desejo de exclusividade e desigualdade, urge uma educação que aprimore a capacidade de discernir, de julgar entre verdade e aparência.
Por outro lado, a reforma da condição humana corrompida pela sociedade da aparência é possível por intermédio do ajuste da opinião pública, o que demanda tempo e responsabilidade com os costumes - característicos do povo - a serem preservados. Eis a grande tarefa do legislador, aquele que persuade sem convencer e deve atuar sobre as opiniões do povo sem comprometer suas tradições. "Melhorai as opiniões dos homens, e seus costumes purificar-se-ão por si mesmo".[1] E mudar a opinião pública compreende mudar o julgamento público, considerando que a ética resulta da avaliação humana sobre tudo o que importa, que não há uma ética natural. Nesse ponto se nota a distinção entre o pensamento de Rousseau e o de seus contemporâneos da ilustração francesa, pois a difusão da ciência e das artes não resultaria no aprimoramento dos costumes, ao contrário, reforçaria a deturpação característica da sociedade humana ao promover alterações severas e irreversíveis. Sendo assim, a ideia de uma vanguarda intelectual com a missão de incutir a verdade na sociedade não coaduna com um povo livre.
            A ideologia da opinião pública, no contexto do século XVIII, implicava na valorização da liberdade de expressão, da imprensa livre, tendo em vista a formação da soberania popular, de uma "opinião pública esclarecida pela atuação pedagógica dos cidadãos da República das Letras". (NASCIMENTO, p. 28) Nesse sentido, há uma proposta de verdade como fundamento da política, daí o papel do intelectual como difusor dessa verdade para torná-la opinião pública e instrumento de vigilância dos responsáveis pelo governo; e, ainda, uma função sócio-política da literatura, que não deveria ficar restrita aos homens de letras, mas propagada ao povo para esclarecê-lo. Com isso, se tornou corrente um critério de julgamento da qualidade da produção literária: sua aceitação pelos leitores. De tal modo que o intelectual passou a formar o público que, por sua vez, seria o avaliador da produção cultural.  Mas, essa "qualidade" não significou um obstáculo à livre divulgação das ideias, pois, todas as opiniões seriam valorizadas, dignas de apreciação para servirem ao esclarecimento público, mesmo o raciocínio falso, que por negação cumpriria essa finalidade ao dar lugar à verdade. "Por acaso a verdade alguma vez foi derrotada quando atacada abertamente e quando teve a liberdade para defender-se? Refutar o erro abertamente é o meio mais seguro para destruí-lo". (NASCIMENTO, p. 61) Essa tendência de valorização da liberdade de expressão como meio de favorecer o predomínio da verdade esteve presente nos discursos revolucionários, tanto de escritores como de políticos, para os quais a censura serviria a propósitos políticos desonestos.
            O que aparece como defesa do pluralismo, da diversidade de pensamento, escamoteia um autoritarismo intocável, pois, embora haja liberdade e igualdade entre propostas distintas no debate público, a partir do momento que prevalece o discurso considerado a manifestação da verdade por uma das partes, não há mais lugar para a opinião diversa, que passa a ser sumariamente condenada. Critérios variados de aferição da verdade foram propostos, epistemológicos e políticos, mas, ao fim e ao cabo, o que determinaria a verdade seria a imposição à força de um grupo sobre os demais, seja por persuasão ou por violência mesmo.
            Essa defesa inconteste da liberdade de expressão estava alinhada com a promoção da transparência na gestão pública, logo, com a defesa do livre acesso de todos a informações de interesse público. Mas, paradoxalmente esse mesmo discurso visava um despotismo da verdade, ao qual todos deveriam se submeter tendo em vista alcançar a felicidade. Caberia ao escritor ser engajado no exercício da liberdade de expressão para manifestar a verdade que formaria a opinião, educaria o povo a manter-se atento sobre a condução da coisa pública, e, ao mesmo tempo, deveria combater as tentativas de censura disfarçadas sob a acusação de abuso da liberdade.
            Contudo, outra questão que permeia esse cenário é a importância do intelectual pedagogo e do filósofo militante, que costumava ter uma linguagem técnica, rebuscada para o povo, e que, portanto, precisaria descer das nuvens, adotar uma linguagem acessível para que a verdade alcançasse o receptor - que necessitava ser esclarecido - e prevalecesse na sociedade como uma moda duradoura. Claro que a intelectualidade deveria tratar apenas de saberes úteis à prática política, nada de saber especulativo, que não contribuiria à formação da soberania popular. Havia a percepção de um elo entre liberdade de expressão e soberania popular; opinião verdadeira e democracia; e, por outro lado, ignorância e tirania. Não por acaso os revolucionários franceses propuseram reformular a opinião pública, tendo em vista o fim do antigo regime, por intermédio de um sem-número de publicações que condenavam a censura e funcionaram como um tribunal da verdade, conforme o critério da aprovação popular dos discursos, que dependiam, claro, da capacidade de persuasão do autor. Combater os preconceitos e difundir a verdade, eis a tarefa dos homens de letras - no século XVIII - para contribuir ao aprimoramento da capacidade de julgar do povo; assim, consequentemente combateriam além da ignorância, a censura e a manutenção do despotismo, da tirania.
            No contexto da Revolução Francesa, surge uma associação política que abraça a causa da formação da opinião pública, assumindo como referência teórica o pensamento político de Rousseau e a Bíblia cristã: o Círculo Social. Entre as propostas revolucionárias encaminhadas pela associação - que implicavam na formação do potencial de julgamento do público, e cuja justificativa ideológica era baseada na ideia de verbo divino, como meio de regenerar a humanidade - se destacavam a reforma agrária, com divisão equânime das terras, e o exercício indireto da soberania popular entendida como vigilância das instâncias de poder. Portanto, o aspecto pedagógico-político do Círculo Social ía além da ilustração do povo - "visto sempre como oprimido, com sua voz abafada, ludibriado pelo poder tirânico do rei e de seus ministros" -, do combate aos preconceitos, tinha a pretensão de acabar com o despotismo dando voz ao povo; e não apenas em França, pois o projeto tinha a pretensão de mudar a humanidade. (NASCIMENTO, p. 79)
            O Círculo Social enfatiza o papel dos intelectuais na difusão da "verdade" para formar a opinião pública - e mantê-la afastada do preconceito que favorece o despotismo - por intermédio de um sistema operacional capaz de canalizar a vontade do povo. A operação seria implementada por caixas de sugestões espalhadas em locais de grande circulação popular. E a vox populi seria depurada pelos mais esclarecidos e honestos dos associados amigos da verdade. "Ao povo desprotegido, à deriva, era preciso dar uma voz, uníssona." (NASCIMENTO, p. 90) A ideia de soberania popular coaduna com a ideia de justiça, ao menos teoricamente, como se nota no Contrato, mas de difícil funcionamento operacional. A "boca de ferro" da associação foi proposta para funcionar como um canal transparente de participação política direta do povo, sem mediação de representantes.
            Rousseau é adotado como o filósofo - por Fauchet e Bonneville - do Círculo Social; o filósofo suíço é a fonte da ideia de opinião pública desenvolvida pelo grupo, e de outras ideias mais, apreendidas conforme a pertinência revolucionária, desde que devidamente ajustadas ao contexto, ou descartadas, quando consideradas incorretas ou inaplicáveis. Os membros do Círculo Social atribuem à filosofia política rousseauísta a razão - em restrospectiva, como apontado por NASCIMENTO ao estudar a crítica de La Harpe - da Revolução; a ideologia pretensamente universal do grupo, ancorada no conceito de opinião pública, é proposta como parâmetro para avaliar outros discursos, se posicionando "acima do jogo político concreto" com uma verdade oriunda da doutrina da palavra criadora. O Círculo Social propunha uma verdade preestabelecida, de caráter universal como fundamento à formação do povo para o exercício da política, entendida assim como um jogo condicionado por princípios, o que exclui a possibilidade de variação discursiva, da política como resultante do embate de interesses conflitantes em busca do consenso. Tudo se resume a uma disputa por supremacia sócio-política, embora se posicionassem como não sendo um clube.
            Algumas das críticas ao Círculo Social remetem ao aspecto obscuro de sua "verdade", forjada via ideia da palavra criadora e ligada à maçonaria, e à noção de política sustentada por princípios e certos propósitos, como a defesa da igualdade das propriedades, a despeito, por exemplo, da defesa da igualdade de direitos, tal como proposta pelos jacobinos e os Amigos da Constituição; Bonneville e Fauchet assumiram posição de vanguarda e cisma com outras associações mais conservadoras.  
            "Amigos da verdade e da justiça, uni-vos" tendo em vista a efetivação do ato pelo qual um povo se faz povo, de um novo "contrato social", mas conforme a ordem da natureza. Os líderes do Círculo Social apropriaram os conceitos centrais do Contrato de Rousseau, devidamente corrigidos, para fundamentar seu ideal de sociedade justa e feliz, sem tiraria. E o objetivo era começar na França, mas espalhar a boa nova pelo mundo.
            A leitura do Contrato feita por Fauchet e Bonneville propôs um ajuste da obra filosófica ao contexto revolucionário para ser útil, pois os conceitos apropriados comporiam uma linguagem para elucidar o sentimento mobilizador. A ponto de, por exemplo, haver uma superação do pessimismo de Rousseau quanto ao desenrolar da história das sociedades, atribuído à época em que viveu, antigo regime, que eles transformam numa visão otimista da liberdade instituída pela revolução, instrumento de redenção da humanidade à ordem natural. Considerando o suíço um dos eleitos pela providência divina para servir à fundação do novo pacto social francês, identificam no texto do filósofo o diagnóstico da crise francesa, a compreensão ampla do problema sócio-político e a solução prenunciada. Fauchet ainda combinou ideias do direito natural com o cristianismo maçônico para explicar a sociabilidade humana natural.
            Uma das correções aos princípios o direito político do Contrato diz respeito à crítica da representação política, quanto ao exercício do poder pelo povo soberano; Fauchet confunde soberania com governo para justificar a delegação dos poderes - inclusive legislativo - a  representantes. Nesse sentido, propõe o Círculo Social como veículo para a sociedade se exprimir sobre a condução do governo e para vigiar os ocupantes dos cargos públicos. "A soberania, enquanto ato de uma vontade coletiva, não surge do nada. Deve ser produzida. E não se trata apenas de criar as condições para que se manifeste. É necessário mesmo inventá-la." (NASCIMENTO, p. 111) "A vontade geral será anárquica e confusa se não for criada através de órgãos que a interpretem e a coloquem em ação". (La Bouche de Fer, nº 31, dez./1790, apud NASCIMENTO, p. 111) Claro que o exercício da soberania proposto via Círculo Social se daria efetivamente por intermédio de seus membros destacados, dentre os mais capacitados, instruídos, que seriam os vigilantes do poder político exercido pelos representantes do povo.
            Outro conceito do Contrato apropriado pelos revolucionários é o de "legislador", relacionado com a filosofia, capaz de promulgar a verdade; a tarefa é assumida pelos ativistas do Círculo Social, dispostos a contribuir com a invenção do Estado político, com a constituição da identidade do povo e com a preservação das leis por tempo indeterminado, atuando como censores da opinião pública para conservar os costumes. Daí a importância do ideal de verdade como aglutinador daqueles simpáticos à unidade em torno da identidade da nação. "O espírito de facção é incompatível com a busca e a difusão da verdade. Por isso, o Círculo Social deve estar acima de todas as organizações comuns, sua função é superior." (NASCIMENTO, p. 119) A pretensão de universalidade do Círculo Social implicava no papel de executor da vigilância pública, principalmente como censor, estando próximo ou se confundindo com a soberania nacional para proteger a unidade do povo.
            Ainda no rol de conceitos do Contrato apropriados por Bonneville e Fauchet, a ideia de religião civil ou sentimentos de sociabilidade que propiciam a unidade e o apego às leis, também será útil para explicar a Revolução como obra da divina providência e agregar um caráter sagrado aos princípios fundamentais do levante, tal como proposto pelo Círculo Social: "a realização do ideal da fraternidade através do grande pacto constituinte de uma nação livre e soberana, realização esta que depende fundamentalmente da ação conjunta de formação e amplificação da voz pública pela redescoberta da força da palavra". (NASCIMENTO, p. 125) "Uma religião é necessária para sancionar todas as sagradas instituições da pátria". (FAUCHET, C. Mandement de Claude Fauchet. Paris, Imprimerie du Cercle Social, p.1, apud NASCIMENTO, p. 125) A religião indica e reforça a importância da palavra criadora para a efetivação da concórdia, do novo pacto social instituído na prática.
            A teoria da palavra criadora adotada por Bonneville é o meio eficaz para o conhecimento da verdade ocultada e, então, para viabilizar a prática política transformadora que resultará na felicidade universal. Missão arrogada pelos amigos da verdade, homens de letras que, assim como os sacerdotes antigos, cuidariam de revelar os mistérios do fogo sagrado da palavra para tornar os cidadãos livres. Vox populi, vox creatio. O cristianismo maçônico legitimava o modus operandi da participação política do povo e a mediação inescusável do Círculo Social. A palavra que no evangelho joanino iniciou a existência, agora indicaria o caminho da ordem da natureza - Jeová, segundo Bonneville - à sociedade humana. Sendo assim, a censura à liberdade de expressão consistia, além duma tirania abominável, num sacrilégio. "Sem a liberdade da palavra não há participação da vida do espírito. A escravidão é a ausência da possibilidade de expressão." (NASCIMENTO, p. 136) "A palavra livre do povo, numa verdadeira república, circula em toda parte, assim como o sangue circula por todo o corpo. Ela é vida de um povo livre." (NASCIMENTO, p. 148)
            A política é o ambiente próprio da opinião, das opiniões divergentes que se dispõem a buscar um consenso por intermédio do diálogo. Sendo assim, não há lugar para a verdade absoluta, predeterminada, na disputa política, o que compreenderia uma negação do diálogo, logo, da política, pois, a defesa de uma opinião atrelada à "verdade", e que predomina, corresponderia à supressão de qualquer outra opinião divergente. O que os associados do Círculo Social fizeram foi justamente estabelecer uma verdade - preceito moral universal - como leitmotiv da política, postura que seria útil até para justificar a violência; claro que, nesse caso, conciliar moral e política é uma tarefa inglória, pois, ou prevalece a moral determinada e se inviabiliza a política, ou prevalece a política, a despeito da moral.


Estudo de um caso brasileiro. Proximidades e distanciamentos com os homens de letras da vanguarda revolucionária francesa


"Não aceitam o conflito. Sua palavra é uma só. Seu vocabulário é conhecido: República una e indivisível, inimigo público, complô, traição, conspiração, forças do mal, poder das trevas." (NASCIMENTO, p. 156)

Considerando que ações políticas de grupos organizados visando a "transformação radical da sociedade" devem ter uma "exigência doutrinária e ideológica" (NASCIMENTO, p. 156), parece bem plausível considerar a "revolução brasileira" - golpe de Estado - perpetrada por militares no Brasil, à luz de um de seus apologistas de primeiro escalão, como a busca pelo estabelecimento de uma verdade una, uma ordem sob a proteção de Deus, como enuncia o primeiro parágrafo da Constituição.
Em 1970, o então ministro da justiça do governo mais violento da ditadura militar, gestão do Gen. Médici, publicou um texto comentando o parágrafo 8º do Artigo 153 da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1967, bastante alterada pelos militares em 1969. No livreto Em Defesa da Moral e dos Bons Costumes, Alfredo Buzaid[2] considera que "o Art. 153, § 8, estabeleceu como regra a liberdade de pensamento e como exceção a intolerabilidade de publicações contrárias à moral e aos bons costumes". (BUZAID, p. 2).

Art. 153. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
§ 8º É livre a manifestação de pensamento, de convicção política ou filosófica, bem como a prestação de informação independentemente de censura, salvo quanto a diversões e espetáculos públicos, respondendo cada um, nos termos da lei, pelos abusos que cometer. É assegurado o direito de resposta. A publicação de livros, jornais e periódicos não depende de licença da autoridade. Não serão, porém, toleradas a propaganda de guerra, de subversão da ordem ou de preconceitos de religião, de raça ou de classe, e as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes.
[3]
(...)

            Deixando de lado o modo muito questionável como fora promulgada a Carta Magna, ou sua reforma, mas, ponderando o texto que vigorou por quase duas décadas, estabelecendo os direitos e garantias individuais, não é possível ignorar que representou um meio de legalizar a censura, a perseguição e a repressão, que de certa maneira já haviam sido regulamentados pelos Atos Institucionais, outra excrescência jurídica.
            O papel do escritor, nesse caso, em nada coaduna com o propósito pedagógico do legislador de Rousseau, aquele que persuade sem convencer, comprometido com a formação da capacidade de julgar do público. Seu intento de corroborar a norma que alteraria de maneira brutal o modo de vida dos cidadãos, não contribui à manutenção dos costumes característicos do povo, à manutenção da tradição cultural, como se poderia considerar, pois, a aludida "defesa da moral e dos bons costumes" compreendia meramente a defesa, a todo custo, do próprio arcabouço jurídico militar que, por sua vez, era um instrumento de manutenção do poder despótico. À pretensa garantia de liberdade de expressão, proposta no parágrafo constitucional, seguia uma severa restrição às críticas - "atentatórias à segurança nacional" - de quaisquer aspectos da ordem imposta pela força das armas. (BUZAID, p. 6) Tanto é que o publicista não consegue esclarecer a norma ao expor as razões da restrição, recorrendo a uma obscura noção de "obscenidade" - e "seus efeitos deletérios sobre as pessoas e as nações" - como pretexto à censura. E a fim de justificar a censura, apela a um sofisma medicinal, manifesto pela autoridade de um médico romeno desconhecido, a exemplos de outros povos que a adotaram, como alguns africanos e europeus; e ainda, como não poderia deixar faltar, apela à ameaça comunista internacional, que escamoteada em publicações pornográficas lograria a dissolução da família, num primeiro momento e, então, conduziria à subversão da ordem política. Recorre a exemplos de textos com mensagens subliminares comunistas; cita alguns periódicos franceses que divulgavam a produção universitária, publicados à época do levante estudantil de Maio de 1968, e que propunham a liberdade sexual, por conta da relação do tema com as contradições da sociedade capitalista. Ao tratar do alcance da norma acaba reconhecendo que o sentido é de proibição total do que for "imoral" e, assim, tornar crime a reles pretensão de publicar obscenidades.
            A prioridade ideológica do Estado de exceção era o combate ao comunismo, era o que tornava necessário sacrificar a liberdade civil. Em troca, ofereciam a garantia da segurança nacional. A "Constituição militar" era taxativa quanto à condenação do indesejável, da subversão da ordem e da publicação de obscenidades, sugerindo que se poderia aplicar a Lei sem a necessidade de regulamentação; o governo tinha a prerrogativa de implementar a censura e a repressão à vontade, instituindo todo tipo de órgão e práticas para um fiel cumprimento da sua Carta Magna. Nesse sentido, foi sancionado o Decreto-lei 1077, que certamente contou com autoria de Buzaid, que estabeleceu a "verificação prévia", censura a publicações julgadas pornográficas, subversivas, antes mesmo de sua produção ou distribuição, sob a responsabilidade da Polícia Federal. Com esse mote do combate ao comunismo se defendiam das acusações de que havia a imposição de uma censura geral.

Quem estudou a teoria da informação sabe que os periódicos, o rádio e a televisão constituem, nos nossos dias, os meios mais eficazes para dirigir a opinião pública. É por meio deles que o comunismo internacional atua sobre o povo, invadindo sub-repticiamente os lares. E os seus agentes, adrede preparados, se infiltram em todos esses meios de comunicação para transmitirem suas ideias dissolventes. (BUZAID, p. 18)

            Eis o propósito central do parágrafo 8º do Artigo 153 da "Constituição militar", dirigir a opinião pública. Considerando o referencial teórico aqui estudado, a "exigência doutrinária e ideológica" para esse controle do julgamento público não é um fenômeno de "nossos dias". A atualidade do Estado de exceção foi o discurso que agregou obscenidade e subversão como subterfúgio ao golpe, manutenção do poder político e à censura, que prevaleceu sobre a liberdade de expressão.
A tarefa do escritor de justificar a ideologia de um regime que tomou o poder político com o uso da força é árdua. Diante do amparo legal estabelecido pelos generais, reconhece que é a doutrina que deve dirimir dúvidas a respeito da falta de definição precisa sobre o que seria uma produção cultural obscena, contrária à moral e aos bons costumes. Evidentemente a interpretação será a mais dilatada possível para a censura abarcar todo tipo de mudança de costume, de padrão de pensamento e comportamento, mesmo se tratando de uma exceção à regra, que seria a liberdade de pensamento, como afirma Buzaid. O recurso ao código penal italiano - o mesmo que serviu a Il Duce - para resguardar a moral e bons costumes do cidadão brasileiro foi um aparente contrassenso, considerando o aspecto nacionalista do propósito; além disso, nem mesmo o apoio de comentários elaborados por dois juristas italianos[4] torna a definição europeia mais precisa, ao contrário, era tão obscura quanto a brasileira. A respeito de críticos ao descompasso cultural do país em relação aos demais, responde com a tendência mundial expressa na Convenção Internacional para a Repressão da Circulação e do Tráfico das Publicações Obscenas, Aberta à assinatura, em Genebra, 12 de setembro de 1923, proposta pela Liga das Nações; o Brasil se tornou signatário em 1931 e a ratificação foi reforçada pelo Decreto 21.188/1932, assinado por Getúlio Vargas, determinando a execução imediata do acordado em Genebra.
            Com argumentos frágeis, facilmente refutáveis, o intelectual governista logrou êxito ao explorar e promover julgamentos comumente presentes em grande parcela da sociedade; o dito senso comum ganhou status de razão oficial. Não à toa "ninguém se insurgiu contra essa legislação penal, considerando-a ofensiva aos foros da inteligência". (BUZAID, p. 24)
            Se os revolucionários franceses amigos da verdade recorreram à doutrina do verbo divino para credenciar sua prática política, o intelectual da "revolução brasileira", que propôs a defesa da moral e dos bons costumes como prioridade do Estado, vinculou esse propósito a princípios cristãos, tendo em vista se posicionar "acima do jogo político concreto". A reprovação de obscenidades compreendia preservar a "civilização cristã"; a concórdia entre os cidadãos seria forjada por intermédio da mesma religião que serviu para agregar diferentes povos em todo o enorme território e em toda a história do que se tornou "brasileiro". Ao considerar que "bom costume é a moralidade pública, que não se pode contrariar sem cair na desestima social"[5] e serve de fonte ao estabelecimento do direito, das leis, retoma a tradição legislativa romana cristã, lembrando que "por sua base ética, que deu larga aplicação dos princípios morais no campo sexual mediante uma série de providências, que objetivavam não só a reprimir penalmente, mas ainda a prevenir tudo que pudesse ser atentado ao pudor ou tivesse caráter de obscenidade, evitando por tal modo o incitamento ao pecar". (BUZAID, p. 36) Lembra ainda que a pudicitia no direito romano cristão não se restringia ao tratamento da questão sexual, mas, sobretudo, da "correção no cumprimento dos deveres que estão fora do direito, a honra e a consideração pública"[6].
A combinação do direito romano com o determinismo moral cristão serviu de base a um modelo de ordenamento jurídico, mas, no século XIX, quando prevaleceu o positivismo jurídico, passou a vigorar a tendência do rompimento entre a moral cristã e o direito, o que se consolidou com a teoria marxista e a ideia de centralidade da economia, postulando o direito como instância subalterna "do sistema de produção"; como se não bastasse, esse marxismo ainda propôs a supressão do Estado e de suas normas jurídicas. (BUZAID, p. 37) Uma das consequências dessa ruptura entre moral e direito foi o recrudescimento da "pornografia, utilizada como instrumento político de desagregação social". (BUZAID, p. 38) E o descalabro fora diagnosticado inclusive pelo Papa Pio XII, que alertou sobre a ameaça das manifestações de imoralidade sobre o mundo católico e, por isso, recomendou a recuperação do vínculo entre a moral cristã e o direito. A moral como fundamento do direito seria o modo de educar a opinião pública, de retificá-la para preservar a família brasileira; e isso indicado pela autoridade de um Pontífice. E assim fica esclarecida a fonte de inspiração do legislador-mor do general Médici, o magistrado Alfredo Buzaid.


Conclusão


A opinião pública manteve certo grau de autonomia, foi relativamente contemplada pelas "vanguardas revolucionárias", tanto é que houve um nível expressivo de corroboração popular dos discursos regeneradores, haja vista, por exemplo, a presença de grande público interessado nas conferências do abade Fauchet e o nível de colaboração e aprovação aos governos militares, entre 1964 e 1985, inclusive após o fim do regime. Além disso, a opção por princípios cristãos não foi fortuita em ambos os casos.
Houve uma discrepância crucial entre esses dois movimentos aqui aludidos. Enquanto Bonneville e Fauchet defenderam de forma inegociável a liberdade de expressão e condenaram a censura, como parte de sua ideologia e estratégia de ação, Buzaid optou pela justificação da censura ampla em nome da moral. Posto isso, em decorrência desses posicionamentos, os franceses defenderam mais informação e menos despotismo; o brasileiro defendeu mais moral e menos insurgência. Àqueles interessava a imprensa livre para expressar a vontade geral dos cidadãos, emancipados por essa condição de acesso ao esclarecimento público. A este mais valia a verificação prévia do publicável para depurar o que seria pertinente ao interesse público.
Mas, tanto os revolucionários franceses, aqui mencionados, como os revolucionários brasileiros, representados por Buzaid, negaram a política em nome de uma verdade absoluta, de caráter sagrado. Venceu a moral, perdeu a política.

           
Bibliografia

BUZAID, Alfredo. Em defesa da moral e dos bons costumes. Brasília, Ministério da Justiça, 1970.
Constituição da República Federativa do Brasil, de 1967. Atualizada Pela Emenda Constitucional Nº 1, de 1969. 17ª ed. São Paulo, Saraiva, 1979. (Legislação Brasileira)
NASCIMENTO, Milton Meira do. Opinião Pública e Revolução: aspectos do discurso político na França revolucionária. São Paulo, Edusp/Nova Stella, 1989.




[1] ROUSSEAU, J.-J. Considerações sobre o governo da Polônia. Tradução, apresentação e notas de Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo, Brasiliense, 1982; p. 89, apud NASCIMENTO, Milton Meira do. Opinião Pública e Revolução: aspectos do discurso político na França revolucionária. São Paulo, Edusp/Nova Stella, 1989. p. 53.
[2] "Em 1960 foi nomeado pelo Governo Federal para elaborar o Anteprojeto do Código de Processo Civil, o qual acabou sendo apresentado por ele quatro anos depois. Em 1966, assumiu o cargo de diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. O exercício nas funções de Diretor foi interrompido duas vezes, por ter de assumir a Reitoria da Universidade de São Paulo, em cujo exercício permaneceu cerca de um ano. Em 1969, foi nomeado vice-reitor da Universidade de São Paulo. Em 1967, por ato do Ministro da Justiça, foi nomeado Coordenador da Revisão dos Códigos Civil, Penal, Penal Militar, de Processo Penal, de Processo Penal Militar, de Sociedades, de Títulos de Crédito, de Navegação Marítima, de Contravenções Penais, de Execuções Penais. Em outubro de 1969, foi nomeado Ministro da Justiça, sendo um dos mentores intelectuais do Código de Processo Civil que entrou em vigor em 1974. Permaneceu no Ministério da Justiça até 14 de março de 1974." Dados biográficos obtidos de http://www.stf.jus.br/portal/ministro/verMinistro.asp?periodo=stf&id=18, em 10/06/2015. O texto de sua autoria ora analisado é a publicação de uma parte da série de conferências apologéticas à doutrina da segurança nacional: I- Rumos políticos da Revolução Brasileira ; II- Em defensa da moral e dos bons costumes; III- Marxismo e Cristianismo; IV- O Estado federal brasileiro; V- Renovação da Ordem Jurídica Positiva. Foi membro da Association Henri Capitant des amis de la culture juridique française e da Associação Italiana de Processo Civil.
[3] Constituição da República Federativa do Brasil, de 1967. Atualizada Pela Emenda Constitucional Nº 1, de 1969. Emenda promulgada pela junta Militar que governava o Brasil: Augusto Hamann Rademaker Grünewald, Aurélio de Lyra Tavares e Márcio de Souza e Mello, ministros da marinha, exército e aeronáutica, respectivamente.
[4] MANZINI, Vincenzo. Diritto Penale Italiano; e MAGGIORE, Giuseppe. Diritto Penale. Citado por BUZAID, p. 22.
[5] Raciocínio proposto por RUGGIERO e MAROL. Instituzioni di Diritto Privato. Citado por BUZAID, p. 35.
[6] BIONDO, Biondi. Il Diritto Romano Cristiano. Apud BUZAID, p. 24.

domingo, 29 de março de 2015

Ódio à democracia - parte I

Em praticamente toda democracia do mundo há protestos. Há protestos até mesmo em países comunistas, como a China. Também há neles uma luta constante contra a corrupção, particularmente, a corrupção política. Assim então sucede na Europa, nos EUA, inclusive na China, onde a pena por corrupção é uma bala na cabeça.
No entanto, em nenhum desses países propõe-se uma ditadura ou um golpe militar como solução para o flagelo da corrupção. É difícil imaginar um norte americano pedindo intervenção militar em sua democracia. Nem mesmo nos momentos mais sombrios de sua história, como no caso da guerra civil americana, a Guerra de Secessão, eles apelaram para uma "anomalia" dessas.
Também é difícil imaginar nos dias atuais um europeu, Francês ou de qualquer outra nacionalidade, ou mesmo um Inglês reivindicando uma "saída" "dessas" para suas crises, sejam elas quais forem. E olha que a crise econômica na Europa foi feia.
A exigência numa democracia do fim da democracia, esta bizarrice, esta sandice parece ser coisa típica de países do "Terceiro Mundo". Somente essa expressão tardia, ultrapassada pode significar e explicar esse desejo. Este sentimento que ciclicamente floresce em nosso país.
O ódio à democracia.
Em todos os outros países as crises econômicas, éticas ou políticas fazem expandir em sua população o desejo por mais DEMOCRACIA.

quarta-feira, 25 de março de 2015

Do poder político legítimo

Do poder político legítimo

A Filosofia Política Moderna apresentou uma inovação teórica fundamental ao conceito de Estado: a apropriação das ideias jurídicas de “direito natural” e “contrato” como meios de tratar da origem da sociedade política e de legitimação do poder público, isso por intermédio do consentimento do povo, entendido como conjunto de indivíduos que almejam os benefícios da cidadania. O contrato é o ponto de partida para a instituição do poder político legítimo do soberano, que visa o triunfo do direito sobre a força, que almeja a paz, a harmonia social. 

Os contratualistas – em geral - consideram que o contrato é um instrumento da razão para organizar a vida social, e que o ser humano, livre e racional por natureza, sobrevive melhor em sociedade. Mas, “o homem nasce livre, e por toda a parte encontra-se a ferros”.

Rousseau, um dos renomados filósofos contratualistas, expressou um pensamento político que indica a importância da participação ativa dos cidadãos livres e iguais à efetivação do propósito do Estado. Mas como o indivíduo pode renunciar à sua liberdade natural e não ser oprimido pela sociedade política?

Um dos problemas mais complicados, suscitado pela tradição contratualista, diz respeito à legitimidade do pacto que funda o Estado. Em que condições seria válido abrir mão da própria liberdade irrestrita para se submeter ao comando de um outro qualquer? Rousseau soube tirar proveito de seus antecessores. Os problemas deixados por eles sinalizaram o caminho seguido pelo “cidadão de Genebra”, que procurou na conciliação entre liberdade e igualdade a melhor forma de legitimar racionalmente o poder soberano, conforme o desempenho do legislador.