sábado, 18 de março de 2017

FOLHETIM 01 - SÚBITA REPENTINA


- Uma cerveja por favor. Para acabar com o horror que é ser Atlas. 



O telefone do quarto tocou. 
- Senhor, são oito e cinquenta.
Um pouco tangido pela confusão de não saber as dimensões de onde estava deitado, agradeceu num ronco silencioso, devido a dificuldade de tornar verbo as sentenças que pensava. As primeiras palavras do dia sempre lhe saíam incompreensíveis. Sentiu na cabeça o peso de dois mundos e não via a hora de arrumar as malas e seguir estrada. Participar de eventos empresariais sempre fora uma grande chatice quando não se tinha vocação para aquilo que fazia. Fingir sorrisos, esboçar reações, entender caretas, falar na hora exata, o verbo que se esperava, na aspiração que se cartilhava. Essas coisas todas lhe confundiam em algum momento. Seu forte sempre fora o manuseio artístico de miniaturas plásticas. A criação de humanos e animais inanimados. De bonequinhos à semelhança de criaturas reais, vivas, que perambulavam seu mundo. As pessoas chamavam de brinquedinhos bizarros, piadinhas de mal-gosto, o que ele afirmava, internamente, arte! A nova arte! A viagem fora essencial para entrar de cabeça nesse novo universo que começava a ganhar legitimidade social.
Tropeçara duas ou três vezes no receituário de conduta do outro mundo que habitava e tinha de enfrentar pelo menos aquela semana inteira. Vacilou ao pular algumas etapas daquela maldita carta de príncipe maquiavélica estabelecida na cabeça de todo homem de negócios em produção. Aquelas etapas do como se comportar fora de seu lar, numa cidade distante daquela que sempre vivera. Em meio a chefes, clientes e uísque de refil, viu-se comprometido pela disposição social de testar seus limites etílicos e pela necessidade institucional de fazê-lo sem ultrapassar os limites naturais do corpo. Sentindo-se numa batalha de reinados, foi bobo da corte, quando deveria exercer a simples função de um coadjuvante de acontecimentos reais. Acostumado com a cerveja, teve de consumir aquela tortura que lhe torrava a garganta e pouco a pouco o tornava um debilóide IN na relação social com aqueles homens dessemelhantes. O uísque, que todos enchiam o peito para dizer que tomavam porque descia bem, lhe causara um rombo espiritual e fonético que ele achou irreparável na noite passada. Após dois copos, sentia sua língua mole e já não conseguia distinguir, fisicamente, enquanto falante e ouvinte, bilabiais, fricativas, oclusivas, surdas e sonoras. Nem tantas outras. Impulsionado por um santo ruim, pedia mais copos, como se conseguisse ser capaz de controlar aquelas sensações pelo agrado do vizinho que lhe empurrava sempre um a mais. Mais um, mais um. 
- Vira!
E o retardado virava! 
-Vira!
E virava. E ria. E craseava todas as palavras terminadas com vogais, semelhantes ou não, inventando, na tentativa de um português formal, uma língua germânica com duas ou três entonações fonéticas por palavra. 
Eis que, para o desafortunado inexperiente, o limite orgânico é atingido das maneiras mais cômicas em lugares mais inapropriados. Falando com um dos clientes, que encontrava-se em condições brandas de alcoolismo, sentiu o mundo retornando em sua garganta. A pressão de todos os seus órgãos em manifesto.
- Não aguentamos mais, seu imbecil!

Do estômago ao esôfago, sentindo um breve e rápido desprazer anal, vomitou. Fora, talvez, o queijo. O queijo, o líder da rebelião, ou o bucha de canhão que vem a frente, ordenado pelo General Uísque. Nunca gorfou no colo de um homem antes. Muito menos um homem tão importante como o cliente de seu chefe. Também nunca desmaiou após um vômito. Muito menos um desmaio de vinte segundos, que só lhe custara o desprazer de sentir o cheiro de seu vômito misturado ao tecido do terno importado de seu cliente estrangeiro. Aquele conjunto todo, fez com que ele sentisse ainda mais ânsia e, tomado pelo desconforto físico, sentou muxoxo no lugar de qualquer um e recebeu a atenção de pessoas, das mais desconhecidas, que lhe ofereceram água e outras coisas mais. 

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